4 de março de 2008

FIEL NA MORTE - Conto - Dimitri Kozma

Uivava lamentando-se:
- Carmem, Carmem! Que saudades sinto de você!
Laudelino chorava como uma criança, debruçado aos pés da lápide onde jazia sua amada Carmem. Aquele enorme e lúgubre cemitério parecia acolhedor, pois dentro dele repousava sua eterna paixão. Cinco anos depois de sua morte, não havia um único dia em que Laudelino não fosse visitá-la em sua eterna morada. Esperava reencontrá-la logo, mas parecia que a hora nunca chegava. Era velho, repleto de rugas, seu corpo pendia para um lado e usava uma dentadura quebrada ao meio. Seu aspecto chegava a ser amedrontador, trajava uma roupa rasgada, puída pelo desgaste do tempo. Depois que a razão de sua vida morrera daquela trágica doença, Laudelino nunca mais se importou com sua própria aparência.
O coração latejava rápido cada vez que ele se aproximava daquela lápide gélida. As lágrimas vertiam como uma correnteza interminável. Sempre roubava flores do jardim para levá-las para sua Carmem. Colocava-as delicadamente no pequeno recipiente destinado a isso. Vez por outra levava um pano e cuidadosamente lustrava letra por letra cravejada naquela tampa de mármore.
Não tinha muito dinheiro, mas na ocasião fizera questão de gastar todas as suas economias no enterro de sua amada. Os agentes funerários viram em Laudelino um ótimo filão para suas arrecadações e sugaram o máximo daquele senhor aposentado que morava de favor nos fundos de uma casa de família.
Todo dia, pontualmente as seis horas da manhã ele se levantava e ia até o cemitério. Ficava a poucas quadras de onde morava e chegava em alguns minutos. Caminhava a passos lentos, seu corpo parecia que gostaria de se desprender de seu espírito. Parecia pesado demais para ser carregado. Mas Laudelino resistia, seguia sua implacável rotina sem ao menos resistir. Fazia aquilo com gozo, com regozijo.
Era um bairro tradicional da cidade, todos o conheciam, chamavam-no de “Laudelino, o louco”, mas sempre o respeitaram. Seus dias pareciam um arrastar incontável de horas aguardando o momento definitivo em que tudo apagaria e finalmente reveria sua eterna paixão, Carmem.
Ninguém sabe precisar de onde veio. Só sabem que se mudou para aquele bairro com sua esposa já doente. Poucas semanas depois já estava morta e Laudelino vendeu tudo que tinha para pagar as despesas com o funeral. Mariluce, uma antiga moradora da rua se sensibilizou com a penúria de Laudelino e o deixou morar no quartinho que ficava no quintal de sua casa. Ganhava comida e roupa lavada, em troca fazia pequenos reparos na casa, como consertar o encanamento, trocar lâmpadas e outras tarefas corriqueiras.
Conversava quando muito com o marido de Mariluce, Olívio, um simpático bonachão que despertava um sentimento de intimidade com todos que com ele conviviam.
Certo dia, enquanto aparava o mato do quintal, com sua morosidade característica, Laudelino começa a chorar esganiçadamente:
- Carmem! Carmem!
Olívio, que estava em casa tomando banho, sai em disparada pelo quintal apenas com uma toalha enrolada na cintura:
- O que foi, Laudelino? O que aconteceu? – Pergunta esbaforido.
Com a cabeça baixa, olhos fechados, debruçado sobre o mato, ele balbucia palavras que reluzem sua veneração pela esposa morta:
- Carmem! Eu sempre te... Carmem! Você foi tão... Carmem! Carmem! Porque? Porque teve que ser assim? Eu te amo tanto! Você... Carmem! – Bate com a mão na testa e continua a repetir: - Carmem! Você... Meu amor! Carmem! Carmem!
Olívio já previa tal reação, o aniversário de morte de Carmem estava se aproximando, sempre quando chegava este período, Laudelino ficava quase insuportável. Nada mais falava além de repetir incessantemente o nome de sua esposa. Em cinco anos nada havia mudado. Os sentimentos que imperavam naquele velho não se transformaram. A obstinação naquele amor se fazia tão forte como no dia em que Carmem morrera.
Naquela noite, deitados na cama, á luz de um fraco abajur, Olívio se queixa com a esposa:
- Mariluce... Estou preocupado com o Laudelino...
Quase dormindo, Mariluce pergunta:
- Preocupado? Com o quê?
- Ele está obcecado pela esposa. Só fala dela...
Ela vira-se para o marido e diz:
- A gente já conhece ele faz um tempão, não faz? Ele sempre foi assim... O que podemos fazer?
Enquanto enfia o dedo no nariz, Olívio responde:
- Não sei... Acho que isso não é normal.
- O quê não é normal? – Pergunta Mariluce.
- Ora... Essa idéia fixa. Não é normal. A mulher dele morreu, ele gostava dela, tudo bem... Mas já passou, né? De que adianta continuar com essa obsessão? – Olívio faz uma bola com a gosma esverdeada que tira do nariz e a aplica disfarçadamente na parede.
Acostumada com as nojeiras do marido, Mariluce continua a conversa:
- Carmem era a mulher dele. Nada mais natural do que o amor que ele sente por ela continuar.
- Não acho... – Retruca Olívio.
Mariluce então levanta seu dorso e se exalta:
- Quer dizer que se eu morrer amanhã você não vai me amar mais? É isso, Olívio?
Ele fica um pouco sem jeito, a esposa insiste:
- Responde! Se eu morrer amanhã você vai deixar de me amar?
- Não é isso, querida! Claro que eu vou continuar te amando... Mas é que...
É interrompido com um berro de Mariluce:
- Mas é que o quê?
Olívio esfrega a mão pela barba rala e diz:
- É que é diferente... Vou continuar te amando, mas de uma maneira diferente, entende?
- Não entendo! Como assim? – Pergunta ela, exaltada.
- Por exemplo, veja bem... Se um de nós morrer... Bem, acho que a vida continua... Não adianta nada ficar como o Laudelino...
Mariluce enfurece-se:
- Quer dizer que, se eu morrer, você vai se casar de novo? É isso? É isso que você quer?
Tentando tranqüiliza-la, Olívio diz:
- Calma, querida... Qualquer um dos dois tem direito de recomeçar uma vida nova... Se eu morrer, você também tem direito de se casar... Eu acho que isso não influi no amor que cada um sente pelo outro...
Jogando a coberta no chão, Mariluce brada:
- Pois eu não me casaria de novo nunca! Eu acho que o casal deve ser fiel até na morte! Está ouvindo? Laudelino está certo! Ele ama a esposa! Ele sim, ama a esposa!
- Mas querida... Você sabe que eu te amo... Te amo mais do que tudo. Só não acho certo a pessoa ficar como o Laudelino.
A esposa coloca os pés para fora da cama e apoia a cabeça com os braços:
- Se me amasse você seria fiel na morte! Quem ama é fiel na morte!
Sabendo da geniosidade de Mariluce, Olívio tenta encerrar a conversa. O sono está chegando e ele deve acordar cedo no dia seguinte:
- Tá certo, querida, tá certo. Eu não vou me casar de novo. Tá bom assim?
Vira-se de costas e fecha os olhos tentando dormir. Mas a mulher continua a vociferar:
- Não acredito em você, Olívio. Não acredito mais em você. Você não me ama de verdade. Não me ama!
As palavras tornam-se repetitivas, Olívio pega no sono minutos depois e Mariluce continua acordada, sentada na cama. Pensando nas palavras de seu marido. Naquela noite, Mariluce não conseguiu mais dormir.

¤

No dia seguinte ela recorre aos conselhos de sua amiga de longa data, Rosa. Logo cedo Mariluce entra na casa da amiga e vai até os fundos, onde ela estende a roupa no varal, depois de contar cada detalhe do que o marido disse, Mariluce comenta:
- Pois é, e você acredita que o Olívio teve a coragem de me dizer uma coisa dessas?
Sem parar de estender a roupa, Rosa responde:
- Ora, Mariluce... Você sabe que homem é tudo igual. Não liga.
De braços cruzados, a espevitada Mariluce retruca:
- Tudo igual não. E como você me explica o Laudelino?
- O Laudelino é louco. Você sabe disso.
- Eu não acho. Prá mim o Laudelino ama de verdade a mulher dele. Ele ama e é fiel até na morte.
Enquanto apanha o cesto de roupas no chão e o carrega até o tanque seguida por Mariluce, Rosa diz:
- Eu acho que, tanto o marido como a mulher tem o direito de se casar de novo. Acho que é uma besteira esse negócio de fidelidade depois da morte.
- Você está errada, Rosa. Totalmente errada.
Mariluce sai da casa da amiga com a cabeça envolta em pensamentos. Será que Rosa sabe de alguma coisa e não quer que ela saiba? Mariluce divaga: “Rosa quer que o Olívio case-se novamente... Claro! Ela quer se casar com ele. Ela quer que eu morra para se casar com ele. É isso!”. Naquela manhã ela apenas anda sem rumo, pensando naquilo tudo. Um baque enorme em sua alma de mulher.

¤

Quando Olívio chega para almoçar, percebe que não havia nada feito, pergunta então para Mariluce:
- Querida, onde está o almoço?
Sentada numa cadeira na sala, ela nem ao menos se vira. Lânguida ela diz:
- Não fiz. Não tem.
Olívio estranha aquela atitude. Nem se lembrava mais do ocorrido na noite passada, mas deixa a situação como está. Não gosta de arrumar confusão e resolve fazer o almoço ele mesmo.
Quando está pronto, chama Mariluce, que permanece inerte na cadeira:
- Querida. Vem comer. Não está lá essas coisas mas dá prá comer...
Os olhos estão fixos na janela, observando o quintal:
- Não quero. – Responde seca.
Olívio tenta ser natural:
- Não está com fome? Vou guardar um prato no forno, tá? Quando tiver fome você pega.
Ela nada respondeu. Olívio então foi chamar Laudelino para comer. Mariluce permanece na sala, sentada sem ao menos esboçar uma reação.

¤

Os dias passam e Mariluce mergulha num torpor profundo. Não conversa mais, apenas imagina sua morte, imagina Olívio casando-se com Rosa. Imagina um complô para assassiná-la. "A comida deve ter veneno!” pensa ela. O choro permanece uma constante em seus dias. Certa vez, Olívio chega em casa e é recebido com duas pedras na mão:
- Seu safado! Você quer que eu morra para se casar de novo, não quer?
Ele, que nem se lembrava mais dessa história, diz:
- Como é?
- Isso mesmo! Não adianta se fingir de santinho! Eu sei que o que você quer é que eu morra para se casar com aquela piranha!
- Piranha?
Gritando, Mariluce diz:
- Sim! Rosa! Aquela vagabunda! Eu sei que você quer que eu morra para se casar com ela! Eu sei! Você não vê a hora de eu morrer para poder se casar de novo, não é?
Olívio, com seu jeito bonachão, acha graça:
- Então é por isso que você está assim todos esses dias? Por causa daquela conversa que a gente teve? Eu tinha até me esquecido disso...
Ela berra:
- Mas eu não me esqueci! Nunca vou me esquecer disso! Você vai me pagar! Está ouvindo Olívio? Você vai me pagar!
Percebendo a gravidade da situação, Olívio argumenta:
- Mas querida! Eu não fiz nada. Rosa é sua amiga, eu nem converso com ela. Você sabe disso. É tudo coisa da sua cabeça... Para com isso, vai.
Sem ceder, Mariluce continua a gritar:
- Coisa da minha cabeça? Isso é safadeza sua! Mas escuta! Isso não vai ficar assim não! Não vai mesmo!
Vira as costas e sai da sala aos prantos.

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Alguns dias depois do ocorrido mais nenhuma palavra a respeito do assunto foi pronunciada. Mas Mariluce havia ficado estranha, parecia que estava em um outro mundo. Numa noite Olívio entra pela porta da cozinha, subitamente vê sua esposa com um olhar doce, quase terno. Preparava a comida com uma vontade nunca antes vista. Admirado com aquilo tasca-lhe um beijo na testa, dizendo:
- Sabia que você ia melhorar, querida, sabia.
Mariluce permanece com um sorriso no rosto, pega um prato de louça no armário embaixo da pia e serve com abundância enquanto fala:
- Preparei prá você, Olívio. Espero que goste. Vamos deixar essa história de lado... Vamos tentar começar de novo.
- Era isso que eu queria ouvir. Você sabe que eu te amo, não sabe, querida? Eu te amo muito.
- Claro que eu sei. – Sorri e oferece o prato ao marido.
Ele se aproxima e dá uma cheirada naquela buchada preparada no capricho:
- Parece que está uma delícia mesmo!
Senta-se e come com uma voracidade animalesca. Mariluce apenas observa. Quando termina, ainda repete o prato. Ao terminar se lembra:
- Querida, não vai chamar o Laudelino prá comer?
Sardônica, ela responde:
- Ele disse que não está com fome agora. Depois ele come...
Sem se importar, o velho Olívio termina seu suculento almoço. Sai da mesa empanzinado. Com muito esforço senta-se no sofá da sala e assiste a um programa humorístico. Mariluce o acompanha e repete:
- Você me ama mesmo, Olívio?
Ele afaga sua cabeça:
- Claro que eu amo, querida! Você sabe que eu não posso viver sem você. Você sabe que é tudo prá mim.
Mariluce deita-se sobre seu colo, mas ele pede:
- Cuidado, querida. Minha barriga está doendo. Comi muito.
Ela sorri e diz:
- Eu também te amo.
Olívio solta um arroto disfarçado. Lentamente assopra o ar que voltou em sua boca e continua a assistir ao programa.

¤

Foram dormir felizes naquela noite. Mariluce parecia flutuar de alegria, seu corpo irradiava um contentamento nunca antes visto. Parecia que acabara de descobrir o amor. Ou melhor, redescobri-lo.
O relógio marca alta madrugada quando Olívio acorda berrando, uma forte dor lhe queima o estômago. Sacode Mariluce, que prontamente desperta:
- Querida! Meu estômago queima! – Dizia enquanto se contorcia na cama.
Mariluce parecia feliz, sorria de orelha á orelha:
- Finalmente chegou sua hora, Olívio!
Ele se assusta:
- O quê?
- Sua hora! Agora você não vai mais poder me trair depois que eu morrer... Sabe porquê?
Ele nada responde, permanece ali se estrebuchando em meio aos travesseiros, seu olhar é atônito. Mariluce continua:
- Porque você vai antes de mim. Você vai embora antes de mim. Eu coloquei veneno de rato na sua comida...
Sem forças para pedir por socorro, Olívio apenas observa. Uma baba espessa já escorria por sua boca, os espasmos ficavam cada vez menos freqüentes. A queimação em seu estômago parecia diminuir e a escuridão começava a cobrir seus olhos. Nada disse. Não pronunciou uma só palavra. Mariluce ao seu lado, ajoelhada na cama, agarrava forte sua mão e apertava-a contra seu peito, chorava de soluçar enquanto dizia:
- Está vendo como eu te amo, Olívio? Quer prova de amor maior que esta? Agora nossa fidelidade vai durar para sempre. Nossa fidelidade vai quebrar a barreira da morte. Eu jamais irei me casar de novo, Olívio... Vou visitar seu túmulo todos os dias, para sempre. Todos os dias.
Olívio não se move mais, os olhos se reviram e não esboça mais nenhum sinal. Mariluce deita-se sobre seu peito e chora, gritando:
- Nosso amor será eterno! Nosso amor será eterno!

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FIM

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FINAL ALTERNATIVO:

Segue-se depois de: “Vira as costas e sai da sala aos prantos”.

Nos dias que se seguem, Olívio e Mariluce não trocaram uma só palavra. Ela saia de manhã e só voltava a noite, geralmente quando Olívio já estava dormindo. Suas roupas estavam cada vez mais provocantes e ela chegava quase todo dia com um colar ou um brinco novo.
Vizinhos disseram que ela foi vista num bairro chique andando num carrão importado ao lado de um velho careca. Ninguém podia provar nada, mas quando perguntavam a ela sobre fidelidade, ela não hesitava em responder:
- Fidelidade na morte! É isso que importa!

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FIM

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Dimitri Kozma

Um comentário:

  1. Desculpem pelo post grande, se alguem tiver uma sugestão de como postar contos de outra forma, seria interessante.

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