13 de abril de 2010

NO LIMIAR DA ANTROPOFAGIA - Parte 12 - Conto - Dimitri Kozma

Advertência: História forte, gráfica e perturbadora, leia por sua conta em risco.
Comece a ler pela parte 1, clicando aqui.

Parte 12

Naquela noite, dona Maria ouve baterem palmas na porta de sua casa, está assistindo ao capítulo da novela das sete e não quer abrir, mas depois de insistirem um pouco a curiosidade falou mais alto e dona Maria foi até o portão. Era a avultada Carmem, trazendo notícias:
- Boa noite, dona Maria.

Um pouco contrariada por estar perdendo a sua novela, dona Maria fala de uma maneira pueril:
- Boa noite... dona Carmem... Não quer entrar para tomar um chá?
Mas a gorda senhora declina o convite:
- Não... Obrigado. Só passei aqui prá avisar a senhora...
- O que aconteceu? – Pergunta a velha, curiosa.
- Parece que prenderam o Bernardo... Prenderam não... Ele se entregou... Foi agora pouco...
Dona Maria alegra-se:
- Não digo que Deus sabe o que faz? Não digo? Agora ele vai pagar pelo crime que cometeu. E Laurinha?
- A Zefa me falou que a Laurinha vai levar alta amanhã... Coitada, vai ter que morar sozinha naquela casa... – Diz Carmem, um pouco entristecida.

Com a naturalidade que lhe é peculiar, dona Maria fala, lívida:
- Deus escolheu este caminho para ela... O que podemos fazer? Paciência...
- Pois é... Bem, dona Maria, não vou tomar mais o seu tempo... Sei que a senhora gosta da novela e eu estou te atrapalhando...
- De maneira alguma, dona Carmem. Eu não gosto dessas novelas não! É muita pouca vergonha. Acho que deveriam censurar essa televisão que só passa lixo! – Esbraveja.
- Pois é... Concordo com a senhora.
Num rompante, ela continua a ralhar:
- Falando nisso, a senhora viu o capítulo de ontem da novela das oito? Viu?
- Não pude ver, estava preparando a massa do pão doce...
- Pois a senhora não perdeu nada! Nada! Foi uma barbaridade, sexo e mais sexo. Aonde vamos parar? Eu me pergunto de vez em quando para onde estamos indo... Com tanta imoralidade por aí...
Curiosa, Carmem pergunta:
- É mesmo! Mas o que aconteceu no capítulo de ontem, dona Maria?
A velha caquética apoia-se no muro e conta:
- Sabe o Luiz Fernando? Aquele moço loiro, casado com a Gisele Cristina?
Carmem balança a cabeça afirmativamente, dona Maria continua:
- Pois ele dormiu com a Raquel, irmã da Gisele Cristina! O pior é que mostraram tudo... Tudo! Onde já se viu mostrarem isso na televisão? Imagina quantas crianças estão assistindo! – Levanta a voz – Parece que hoje em dia só pensam nisso, são um bando de selvagens, isso sim!

Carmem concorda plenamente, e entra no clima de exasperação de dona Maria:
- É um horror mesmo! Depois as crianças saem por aí tudo fazendo coisa errada e ninguém sabe porque... Porque os pais não tem limite, porque eles deixam as crianças fazerem o que bem entender!
Apoiada no muro, dona Maria vê uma minúscula formiguinha, passeava perdida de sua colônia, sem pensar, ela espreme o inseto, apertando entre os dedos. Enquanto brinca com a formiga esmigalhada ela fala, ainda enfurecida:
- E aquele rapaz... Como ele chama? – Dona Maria tenta se lembrar. – Aquele que na outra novela fez o Eduardo... Aquele rapaz que tem os olhos claros...
- O Marcelo Moreno! – Lembra dona Carmem.
- Esse mesmo! Eu li na revista que ele gosta de homem. A senhora acredita numa coisa dessas? De homem! - Num estado de exaltação, dona Maria continua a berrar – Pederasta! Isso é o que ele é! Um pederasta!

Com naturalidade, dona Carmem diz:
- Xi! Isso é o que mais tem na televisão. Esses atores que fazem novelas são tudo um bando de maricas! Tudo! – Pausa por um instante e então se recorda de outro caso - Falando nisso, a senhora soube? O Deodato, casado com a Norminha? Pois é... Parece que ele assumiu que é homossexual!
- Meu Deus! Mas... Ele é pai de família! – Espanta-se dona Maria.
- Pai de família, é? Pois ele foi morar com o rapaz que trabalha na padaria, o Welinton. Largou a mulher com dois filhos e tá dormindo com aquele garoto.

Segurando a formiga em sua mão, dona Maria faz uma pelota com o inseto morto, nem percebe, então diz furiosa:
- Eles são sujos! Quando a justiça de Deus chegar eles vão se arrepender.
Dona Maria espreme mais ainda a formiga, que já está quase esfarelada:
- Eu jamais admitiria um filho meu ser assim! Eu jamais admitiria! Ainda bem que meu Júnior era muito homem! Esse é um orgulho que eu levo pro resto de minha vida! – Pausa, olha para a formiga em sua mão e continua a falar – Eu acho que esses pederastas tinham que queimar nos quintos dos infernos!
Corrige-se:
- Não que eu queira isso, é Deus que quer assim! Essa doença, a Aids... Está aí prá isso! Deus a fez prá punir esses pecadores imorais!

Carmem recorda-se com um ar saudosista:
- No nosso tempo não tinha nada disso, não é?
- Pois é! - Dona Maria olha aquela formiguinha que agora é um amontoado de partículas pretas inerte em sua palma e esfrega as mãos. Então berra - Isso é sinal do fim dos tempos! Quando Jesus voltar, trazendo a ressurreição dos justos, esses porcos miseráveis arderão nas chamas eternas! A senhora vai ver só! E nesse dia eu estarei assistindo a aqueles que não são tementes a Deus afundarem-se nas trevas.

Carmem apenas olha. Dona Maria faz uma pausa, percebe que saiu um pouco da linha e volta ao normal, dando um longo suspiro. Depois se lembra de perguntar:
- Dona Carmem, falando nisso, a senhora soube de alguma notícia sobre a Conceição?
- Pelo que eu fiquei sabendo, ela não saiu ainda de casa, não...
- Mas um dia vai ter que sair, não é? – Pergunta dona Maria, maliciosamente.
- Com certeza! Mas me conte, dona Maria, como foi naquele dia? Eu sei que vocês vararam a noite fazendo uma novena na porta dela. A Zuleica me contou...
Com um ar de contentamento, dona Maria diz:
- Pois é... Nós ficamos ali tentando tirar aquele demônio que dominou o corpo dela... Sabe, eu acho que o demônio aproveita quando as pessoas estão mais fracas de espírito para entrar no corpo delas... Só pode ser isso. A senhora não imagina como ela tratou o padre! Foi terrível!

Carmem se benze:
- Credo em cruz!
- Mas eu acho que não adiantou muito... O diabo é poderoso demais, dona Carmem!
- Mas Deus é mais forte, só Ele vai poder vencê-lo...
- E vai vencê-lo, dona Carmem. Vai vencê-lo. - Com um olhar corsário, dona Maria conta – Agora me lembrei! A senhora não acredita no que eu ouvi!
- Pois me conte, dona Maria.
- Sabe o Germano, marido da Cida?
Carmem apoia-se no muro, prestando muita atenção nas palavras de dona Maria, que continua a relatar:
- Bem... Eu ouvi dizer que o Germano está traindo a pobre dona Cida! Ouvi dizer que a vagabunda mora lá em Monte Alto... E ele vai toda tarde lá na casa dela. O safado parou até de beber, veja a senhora!
A bonachona Carmem fica estupefata com aquele fato revelado:
- Pobre Cida! Tão boa com ele e esse safado a trata assim!
Raspando com a unha uma ponta de ferrugem que acabara de reparar no pequeno portão de entrada, dona Maria diz:
- É falta de Deus no coração! A senhora sabia que ele não vai á igreja e a pobre Cida tem que ficar inventando desculpas toda hora? Da última vez ela me falou que ele estava com problema na próstata... Mas prá fazer safadeza ele não tem problema nenhum, né? Aquele velho safado! É outro que quando morrer vai direto ao inferno.

As duas ficam alguns segundos sem assunto, neste momento, olham para o chão ou para a rua. Dona Maria insiste em cutucar com a unha a ferrugem do portão, torcendo para que Carmem vá logo embora para que ela possa assistir ao final da novela. Finalmente, depois de alguns minutos em silêncio, a simpática gorda toma a iniciativa:
- Bem, dona Maria, vou precisar ir, ainda tenho que fazer o recheio do bolo que o Abel me encomendou.
- Tá certo. Bem, nos vemos amanhã na missa... Boa noite, dona Carmem.

Dona Maria entra apressada. Não quer perder o finzinho do capítulo de hoje da novela das sete. Senta-se, tira o chinelo e estica as pernas sobre um banquinho em frente ao televisor. Está confortável em seu sofá. A novela das oito vai começar, agora ela não vai mais abrir a porta, não pode perder este capítulo por nada neste mundo.

CONTINUA...

Frase do Dia

É uma pena que nós levemos tão a sério as lições da vida somente quando já não nos servem para nada.
Oscar Wilde

A cachorra que ri...

A cadela mimosa sorrindo para o dono que é meio tonto...

Lei de Gerson - Vídeo Tosco

Não entendi direito o que o cara queria fazer com este vídeo, mas a primeira cena, que simula um game side scrolling, é interessante.

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