28 de maio de 2010

NO LIMIAR DA ANTROPOFAGIA - Parte 16 - Conto - Dimitri Kozma

Advertência: História forte, gráfica e perturbadora, leia por sua conta em risco.
Comece a ler pela parte 1, clicando aqui.

Parte 16

Naquela noite, comera uma manga espada inteira antes de se deitar. Seu estômago não aguenta e lateja como nunca. Na cama, dona Maria estrebucha sem sono, o suor escorre sem limites deixando o travesseiro todo úmido. Ela pensa: “Vai ser agora! Agora que eu morro! Aqui sozinha!”. Senta-se na cama, as suas costas doem como nunca, parece estar toda moída. Uma tontura lancinante permeia por sobre sua cabeça. Com alguma dificuldade, vai até a cozinha beber um copo d´água, sua boca está grudada de tão seca. Olha no relógio de parede e verifica que ainda é madrugada.

“Morrer de madrugada! Deus... Não me permita morrer de madrugada... Sozinha!” – Pensa ela, enquanto observa as sombras das árvores balançando ao sabor do vento refletindo na mesa da copa. O silêncio é absoluto, apenas quebrado pelos grilos do jardim e o tic tac irritantemente repetitivo do relógio.

Nervosamente, dona Maria lava o rosto na pia da cozinha eliminando um pouco o suor que deixava sua pele pegajosa. Vai até o banheiro e urina abundantemente. Sua uretra ardia como nunca, um ardor que parecia não ter fim. Sentia um cheiro forte de amônia exalando do vaso sanitário. O suor começara novamente.

Pé ante pé ela volta para seu quarto, não sem antes fazer o sinal da cruz ao passar pela imagem da Virgem Maria que juntava poeira na mesinha de canto ao lado da porta. Senta-se novamente na cama e começa a rezar incessantemente. Seus olhos estão marejados. Ela pensa: “Não existe nada pior do que morrer sozinha!”. As árvores que se alvoroçam no quintal parecem querer fazer companhia á ela numa hora tão difícil.

Num último apelo que faz á Deus, dona Maria pede: “Deus! Não me deixe morrer agora... sozinha! Por favor, Deus todo poderoso! Não me deixe morrer sozinha!” Com as mãos espalmadas, ela implora: “Eu deixarei o Senhor todo poderoso me levar... Sei que minha missão já está cumprida aqui na terra! Sei que minha alma repousará á seu lado... Mas só suplico que não me deixe morrer sozinha!”

Nenhum sinal, nada. Dona Maria ainda continua com aquelas dores no estômago. Uma forte queimação que não para. Deita-se novamente, mas aquele travesseiro úmido deixa uma impressão estranha, mesmo assim ela permanece deitada. Pega seu velho terço na mesinha ao lado da cama e começa a orar, oração esta que se segue até ela pegar no sono novamente.

Já é dia, dona Maria abre os olhos e antes mesmo de se levantar ela pensa: “Graças á Deus! Estou viva! Não morri sozinha.”, levanta-se mais disposta e agradeçe: “Obrigada, meu Deus! Obrigada por não me deixar morrer sozinha.”. Enquanto toma o chá de erva cidreira que fizera com as folhas que acabara de colher no quintal, ela se lembra do dia em que encontraram o seu Gumercindo morto, morreu sozinho em sua enorme casa. O corpo foi encontrado somente após uma semana. Já tinha entrado em decomposição, a pele alva estava preta, dura e cheia de vermes. Os olhos esbugalhados, pareciam querer saltar de suas órbitas. Realmente foi uma horrível maneira de se deixar esta vida. Dona Maria ainda era jovem quando presenciara este episódio. Ainda nem havia se casado quando adentrou naquela casa.

Ela vendia roupas de lã para ajudar a sustentar sua mãe, que não andava bem de saúde. O Gumercindo sempre costumava comprar suas peças, era um velho friorento, sempre andava impecavelmente trajado e jamais esquecia do cachecol. Naquele dia ela bateu palmas em frente á casa do velho senhor. Não obteve resposta e foi-se adentrando pela porta aberta, escancarada na verdade. Não tinha familiares, nada. Era um solitário no mundo. Aquele cheiro de carniça podre penetrou em seu nariz e nunca mais saiu. Parecia impregnado em seu pulmão. A casa estava suja, havia comida espalhada pelo chão. Foi entrando e delicadamente chamando o homem, que nada respondia. Teve que colocar um de seus cachecóis na frente a sua narina que já ardia perante odor tão abjeto. Quando chegou ao quarto, pode ver, deitado na cama, o cadáver do seu Gumercindo naquele estado deplorável. Aquela imagem ficou estampada para sempre em sua retina. Lembrou-se que ficou observando aquilo por um certo tempo, num estranho misto de repugnância e atração.

Aquelas veias estouradas, que traziam em seu interior um sangue escuro, coagulado, chamaram sua atenção. Ficou por algum tempo observando o caminho que aqueles bichinhos faziam pelo corpo, deixando uma rala gosma como rastro. Dona Maria nunca antes tivera tanta atração por algo tão funesto. Deveria ter uns doze anos, no máximo. Depois de finalmente perceber a gravidade daquilo, ela gritou de desespero chamando por ajuda.

Aquela imagem permaneceu em sua cabeça por dias, ou meses. O chá já está quase acabando quando ela começa a pensar: As únicas ternas lembranças que dona Maria levava se sua infância eram estas: Seu pai no caixão, a bonequinha de louça, Verinha, e o seu Gumercindo. Quando sua mãe morreu, ela já era crescida, casada com Olegário.

Dona Maria permanece ali sentada, olha para a xícara sem muito interesse e a balança, brincando com a pasta de açúcar que se acumulou no fundo. Nunca abusara do açúcar em virtude de sua doença, mas hoje sentiu uma enorme vontade de saturar aquele chá. Não sabia o porque, mas sentia esta vontade irresistível. Engole um pouco daquela massa adocicada e se lembra, ao mesmo tempo, de tudo que aquela maldita velha fez com ela, do tanto que sofreu nas mãos de sua miserável mãe.

Autoritária, fez com que ela se casasse com Olegário por considerar que ele tinha uma boa condição social. Jamais havia falado mais do que meia dúzia de palavras com o marido e já estava ali naquele altar, dizendo o “sim” á aquele homem nojento. Na sua infância, Maria apanhava todos os dias, parecia até que sua mãe a odiava, parecia que queria descontar sua raiva naquela frágil criança. Não se recorda da quantidade de vezes em que apanhou de vara verde, deixando avermelhados vergões na pele e negros vergões na alma. Quando se enlaçaram, a sua mãe os acompanhou, foi morar com o casal. Graças á Deus, três anos depois ela começou a enlouquecer, andava gritando pela casa de madrugada como uma desvairada, saía correndo pelas ruas sem direção e estava cada vez mais agressiva. Olegário começou a achar aquela situação insustentável e decidiu colocá-la numa casa de repouso que ficava na cidade vizinha.

Com enorme alegria, dona Maria recebeu a notícia de sua morte poucos meses depois. A imagem daquela mulher que tanto a tinha feito sofrer jazendo naquela mesa de concreto a deixou maravilhada. Todos olhavam para dona Maria com uma certa pena e ela deveria fingir muito bem para que não gerasse nenhum comentário malicioso, deveria fazer jus á aquele dó que todos sentiam. Ela era uma mulher formada, mas chorava como uma criança. O corpo de sua mãe era um farrapo humano, nas últimas semanas não comia mais, ficava amuada num canto daquele minúsculo asilo olhando as moscas que pousavam sobre sua pele, despejando larvas. Definitivamente aquela mulher não parecia com sua mãe, aquela mulher, outrora forte, estava ali inerte, sem esboçar nenhum movimento.
Finalmente dona Maria volta suas divagações ao presente. Os rostos sofridos daquela gente estava girando como um enorme carrossel por sua atribulada alma. “Graças á Deus! Não morri sozinha!” pensa ela, tentando esquecer um pouco das desgraças que permeavam freneticamente sobre sua vida.

CONTINUA

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