30 de abril de 2010

NO LIMIAR DA ANTROPOFAGIA - Parte 14 - Conto - Dimitri Kozma

Advertência: História forte, gráfica e perturbadora, leia por sua conta em risco.
Comece a ler pela parte 1, clicando aqui.

Parte 14

Dona Maria resolve dar uma volta pela cidade, debaixo de um sol lancinante que banhava sua pele. Raros eram os dias em que o calor não se fazia presente naquela região do estado. Passa em frente ao velório, que está vazio. Pensa: “Bem que alguém poderia ter morrido hoje.”, mas em seu ímpeto saudosista que sente, ela começa a se recordar de sua primeira vez.

Tinha quatro anos, Maria nunca havia ido a um velório. Quando seu pai morrera, os mortos ainda eram velados em casa. Era muito jovem para se lembrar, a única imagem dessa ocasião que a pequena Maria havia guardado era daquele caixão, bem mais alto que ela. Não conseguia observar dentro, apenas via o nariz proeminente de seu finado pai. Era cheio de pelos que saltavam da cavidade nasal. Tudo era escuro e ouvia os lamentos das pessoas que acompanhavam aquele momento pesaroso. Apenas de um momento dona Maria se lembra nitidamente: Sua mãe a levantando, aos prantos, e dizendo em tom autoritário: “Beija seu pai! Beija!”. A pequena Maria não sabia o que fazer, as velas que iluminavam o ambiente davam um aspecto fantasmagórico ao rosto do pai. Sua mãe insistia, a balançando para que o fizesse: “Vai Maria! Beija o seu pai!”. Aquelas palavras ecoaram em sua mente por anos e até hoje dona Maria se lembra dos gritos de sua mãe mandando beijar seu pai morto.

Mal falava e não conseguia entender direito o significado daquele momento. Sem escolha, sua mãe inclinou mais seu rosto até que seus delicados lábios tocassem na pele gélida daquele cadáver. Pode sentir o cheiro da morte, que a persegue até hoje. No instante seguinte sua mãe dizia: “Isso! Beija seu pai! Maria! Beija seu Pai!” Aquelas palavras repetiam-se em sua cabeça insistentemente. Era a única recordação que Maria levara daquele momento.

Em seguida, a velha senhora passa pela pequena delegacia. Está calma, lúcida. Olha aquela frente cimentada e o velho carro de polícia que servia ao município. A porta da frente está aberta e ela entra calmamente. Quando avista o delegado Velasquez sentado numa cadeira pouco confortável, falava ao telefone. Ela aguarda o término da ligação prostrada diante a mesa dele. Quando finalmente desliga, dona Maria diz:
- Delegado... Fiquei sabendo que conseguiu prender o seu Bernardo...

Ele se recosta na cadeira e diz, com um certo orgulho:
- Pois é, dona Maria. Conseguimos! Ele tá lá na cela... Não falei que a gente ia conseguir pegá-lo?
- Deus ajudou, seu Velasquez... Deus ajudou... – aproxima-se do delegado e pergunta: - Diga-me... Será que poderia ir até a cela falar com ele?
Velasquez reluta:
- Não sei... Não sei se é perigoso para a senhora...
- Ora! Conheço o seu Bernardo há mais de trinta anos... Ele não vai fazer nada não...
O delegado levanta-se, apanha e chave e diz:
- Tá certo, dona Maria... Quem sabe a senhora não arranca alguma coisa dele...

Abre uma pesada porta de chumbo que há anos não é movimentada. Bernardo foi o primeiro preso em mais de cinco anos naquela pacata cidade. O último preso foi um simples caso de roubo de galinhas, mas agora o assunto era sério, assassinato.

Dona Maria pode avistar de longe o velho Bernardo sentado no chão imundo da cela. Não existiam bancos nem ao menos um piso com ladrilhos. Ele estava sentado naquela fria laje úmida. Parecia aceitar seu destino, a cabeça abaixada não tinha coragem de se levantar para ver quem chegava. Velasquez diz, tentando aparentar dureza:
- Levanta Bernardo! Dona Maria veio falar com você!
Ele timidamente ergue o olhar, um pouco envergonhado e se levanta, aproximando-se da grade. O delegado sai, deixando-os a sós. Dona Maria olha para seu rosto sofrido por alguns segundos, percebe que nesses últimos dias, Bernardo envelheceu mais de dez anos. Os sulcos em sua pele mostravam um homem amargurado. Finalmente ela diz:
- Seu Bernardo... Porque o senhor fez aquilo?
Quase sem força na voz, ele diz:
- Dona Maria... Eu... Eu não pude aguentar... Ver minha Laurinha desgraçada por causa daquele... – Seu olhar se enche de ódio. – Daquele... Maldito! Daquele canalha!
- Seu Bernardo...

Antes que ela pudesse falar é interrompida. Segurando forte nas grades e colocando o rosto entre elas, Bernardo diz em tom mais alto, quase desvairado:
- Mas eu... Eu lavei a honra de minha família! Lavei! Honrei minha esposa que está debaixo de sete palmos! Minha Laurinha vai embora da cidade... Só vai voltar quando tiverem esquecido disso tudo...
Ela o repreende:
- Mas o senhor acha certo o que fez? Tirar a vida de um moço... Espancar sua filha? Acha certo?
As lágrimas vertem dos olhos avermelhados de Bernardo:
- Não... Não é certo... Dona Maria... Eu não... Eu não queria que fosse assim... Preferia nunca saber... Mas agora... Agora... – Levanta os olhos e pergunta: - A senhora me perdoa, dona Maria? Diga que me perdoa pelo que fiz...
- Não sou eu que devo te perdoar, seu Bernardo. O único que tem condições para isso é Deus... Está ouvindo? Somente Deus poderá abrir o caminho da redenção para você. – Diz dona Maria, friamente.
Bernardo comprime mais sua cabeça entre as grades da cela que está suja de ferrugem, seu rosto fica tingido de marrom acobreado. As lágrimas derramam incessantemente e ele apenas vocifera:
- Eu... Eu não devia ter feito isso... Não devia...

Dona Maria franze a testa e se aproxima da grade:
- Agora é tarde, seu Bernardo... Agora é muito tarde... Já foi feito... Eu vou rezar por sua alma. Para que Deus lhe alivie o mais breve possível. Lembre-se, seu Bernardo, o que fez não tem perdão. Você tirou a vida de um ser humano.

Ele chora baixinho, com a cabeça arriada. Dona Maria tira de sua bolsa um pequeno livrinho de Salmos, dizendo:
- Vou ler um salmo para você... Preste muita atenção... - Abre numa página marcada com um pedaço de papel rasgado e força sua vista para ler: - “Ó Senhor Deus, a quem a vingança pertence, ó Deus, a quem a vingança pertence, mostra-te resplandecente.” – Para, olha para o pálido rosto de Bernardo e continua: - “Exalta-te, tu, que és juiz da terra; dá a paga aos soberbos.” – Na medida em que lia os versículos, dona Maria ia se exaltando mais e mais: - “Até quando os ímpios, Senhor, até quando os ímpios saltarão de prazer?”, “Até quando proferirão, e falarão coisas duras, e se gloriarão todos os que praticam a iniquidade?” – Finaliza lendo: - “Reduzem a pedaços o teu povo, e afligem a tua herança.”.

Fecha o livro e olha fixamente para Bernardo. Ela nada diz, apenas olha para o chão, sem conseguir levantar o rosto. Após alguns momentos de silêncio, dona Maria dispara:
- Eu achei que este salmo era perfeito para o que aconteceu... Perfeito para o senhor, seu Bernardo...
Perdendo o rumo, Bernardo apenas aceita:
- Sim, Sim... É perfeito...

Dona Maria sai sem ao menos se despedir, apenas diz:
- Estarei rezando pelo senhor...
A porta de aço se fecha e Bernardo volta a ficar solitário naquele escuro cubículo mal cheiroso. A dor em seu coração parece ter se intensificado mais. Aquelas palavras que dona Maria leu parece que ficaram cravadas em sua alma. “Reduzem a pedaços o teu povo, e afligem a tua herança.” Parece se repetir sem cessar em sua amargurada mente.

Laurinha lhe vem á cabeça, aquela menininha meiga, uma aluna exemplar, um doce de pessoa. “Meu Deus... O que eu fiz com minha filha?”... Ao mesmo tempo em que a imagem daquele jovem lhe tira novamente a razão: “Maldito! Maldito sujo! Desonrou minha Laurinha!”. Um turbilhão se inicia. Bernardo segura furiosamente sua cabeça, que não para de latejar. Dona Maria ainda observa aquilo pela fresta da porta. Parece que seu trabalho estava dando resultados.

Bernardo começa a se contorcer no chão, parecia querer expulsar algo ruim que estava em seu interior. Olhando aquilo, a velha senhora pensa: “É o demônio se manifestando!”. Mas não há nenhuma ação paranormal, apenas um velho que desgraçou sua vida e a de duas outras pessoas se remoendo em remorsos e rancores. Olhando aquilo, dona Maria pensa: “Quem sabe amanhã não o encontram enforcado na cela?”. Imagina o cadáver de Bernardo com a língua de fora, babando uma saliva espessa, pendurado na grade depois de ter se debatido com fortes dores ao se enforcar durante aquela noite em que ele conviveria com seus mais íntimos pensamentos.

Estirado no chão, apenas rosna o nome de sua filha, não sabe dizer outra coisa a não ser: “Laurinha... Laurinha...”. “Velho safado!”, pensa dona Maria, “Deve ter abusado da filha! Com certeza abusou!”. Forma uma imagem mental da pequena Laurinha, ainda criança, sendo violentada pelo pai numa noite de chuva. Consegue imaginar cada detalhe, cada movimento do corpo do velho currando a pobre menina. Os gritos, o sangue jorrando do sexo deflorado. Os seios ainda não formados sendo mordiscados pelo velho asqueroso. Pode até ouvir a voz da criança gritando desesperadamente por ajuda: “Socorro! Por favor! Alguém me ajude! Socorro!”. O suor de prazer do pai sendo misturado com o suor de dor e medo da inocente filha.

Um ódio irracional toma todo o corpo de dona Maria, que quer ver aquele homem morto a qualquer custo.

CONTINUA

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