23 de abril de 2010

NO LIMIAR DA ANTROPOFAGIA - Parte 13 - Conto - Dimitri Kozma

Advertência: História forte, gráfica e perturbadora, leia por sua conta em risco.
Comece a ler pela parte 1, clicando aqui.

Parte 13


A madrugada chega e dona Maria volta a ter aquele horrível pesadelo, a parede se fechando, o tempo acabando. Dessa vez ela percebe que o caminho naquele corredor escuro que se estreitava em sua frente era um aclive. Ela parecia tentar escalar aquele curso cada vez mais. Porém, era em vão, o muro impedia sua passagem. Acordou de manhã novamente com aquela impressão de que seu tempo estava acabando. Tinha a nítida sensação de que em breve o ceifeiro viria buscá-la para repousar nos braços do senhor. Via sua vida acabando, sua idade era avançada e sua carne estava cada vez mais fraca. A tênue luz que varava pela fresta da janela permitiu que dona Maria olhasse suas mãos. As manchas senis cobriam toda sua pele enrugada. Se sentia uma jovem, mas olhando aquela mão crispada de aparência cadavérica, finalmente estava percebendo que a areia na ampulheta da vida estava terminando.

Uma estranha formigação em seu estômago faz com que ela se sentisse mal. Levanta-se meio zonza e caminha com alguma dificuldade até o banheiro. Depois de urinar, pega um analgésico no armário e o ingere rapidamente, sem água. Sente aquele comprimido entalar em sua goela, um estranho pressentimento passa por sua cabeça: “E se eu morrer sufocada pelo remédio?”, percebe que terá que beber um gole d´água. Imediatamente abre a torneira e faz uma concha com a mão, bebendo o líquido. Finalmente sente a garganta se desobstruir. Respira aliviada, havia escapado dessa.

A praça estava apinhada de crianças quando dona Maria se senta num dos bancos. Jogavam bola no meio da rua, todas brincando felizes. Em seus devaneios, dona Maria começa a se lembrar do tempo em que era uma garotinha Ingênua, em sua mente forma-se nitidamente a imagem daquela menininha tímida de sete anos brincando naquela mesma praça.

Lembra-se da pequena Verinha. Seus pais acabaram de lhe presentear com uma linda boneca de louça, cabelo todo cacheado, vestidinho rendado, pintada a mão. Mandaram trazer da capital, um artigo de luxo naquela cidadezinha onde muitas vezes faltava até produtos de primeira necessidade. Vinha de uma família pobre, podia imaginar o esforço que fizeram para comprar aquele mimo para ela. Trabalhavam na lavoura dia e noite, chegaram até a passar fome. Mas guardaram uns parcos trocados durante anos para conseguir comprar aquela bonequinha de louça. O dia ficará marcado na memória de dona Maria para sempre. Naquele dia, Verinha resolveu mostrar a boneca para as amiguinhas, com todo o cuidado, ela a levou até a praça, carregando como se fosse um bebê em seus braços.

Quando lá chegou, sentiu-se importante ao ver os olhares invejosos que as outra meninas lançaram sobre ela. Dona Maria lembra-se nitidamente de detalhes do rosto de Verinha. Aquele ar de superioridade que exalava por ter uma boneca de louça. Pela primeira vez teve a sensação daquela gastura corroendo seu estômago. Todas elas olhavam sem dizer nada, apenas olhavam aquela lindíssima boneca de louça nos braços de Verinha. Timidamente, a pequena Maria pediu:
- Verinha... Posso brincar um pouquinho?

A reação de Verinha foi inesperada. Disse um sonoro “Não!”. Aquela palavra começou a dançar freneticamente na cabecinha de Maria, um ódio irracional tomou todo seu corpinho magro. Pela primeira vez em sua vida, desejou a morte de alguém. Desejou que aquela menina sofresse como um cão antes de morrer, queria ver aquela desgraçada estirada no chão, apodrecendo. As outras meninas nada disseram, estavam maravilhadas demais com aquela bonequinha de louça. Mas Maria era diferente, a imagem da boneca desapareceu de sua frente, apenas tinha olhos para aquela maldita menina. Sua imaginação atingia limites nunca antes alcançados, via aquela garotinha sofrendo horrores enquanto morria. Imaginou Verinha estirada num caixãozinho. Chegou a rezar para que isso acontecesse.

Estava saudosista hoje, acordara se lembrando do passado, como se ela estivesse revendo toda sua trajetória de vida. Quando se lembra da maldita Verinha com aquela boneca, ela cerra as mãos, o ódio não passou e jamais passará. Mas então volta a se lembrar: Passou um ano e Finalmente suas preces foram atendidas. Verinha estava morta, afogada enquanto nadava no lago. Aquilo representou a maior benção que a pequena Maria havia recebido em toda sua vida. Aquela menina que ostentava aquela boneca estava deitada num caixão barato, inerte para sempre. A seu lado, estava a boneca de louça, que iria lhe acompanhar para as profundezas da terra. Seria enterrada com ela. A pequena Maria adorou o choro de dor dos pais daquela menina. O rosto deitado no caixão parecia azulado, estava todo enrugado devido ao tempo excessivo que permaneceu embaixo d´água. “Bem feito!” Pensa Maria, que olhava tudo de longe, com uma felicidade quase que irracional.

Agora, em sua velhice, olha de longe aquelas crianças brincando e imagina que, em algum lugar, existe uma garotinha ingênua sofrendo como ela sofreu. Pensa então que seria melhor ver aquelas crianças todas mortas ao invés de ver uma pobre menininha sofrendo as injustiças das malditas crianças perversas. Imagina que maravilhoso seria ver um caminhão desgovernado passando por aquela rua e esmigalhando todos aqueles cruéis infantes. Os gritinhos de desespero ecoando pela praça seriam como uma sinfonia para seus ouvidos.

CONTINUA

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