30 de julho de 2010

NO LIMIAR DA ANTROPOFAGIA - Parte 20 - EPÍLOGO - Conto - Dimitri Kozma

Advertência: História forte, gráfica e perturbadora, leia por sua conta em risco.
Comece a ler pela parte 1, clicando aqui.

Parte 20 - EPÍLOGO

Finalmente anoitece e a chuva termina, anunciando uma noite fresca e agradável. É um belíssimo sábado de céu estrelado. Mais uma vez o único velório da cidade serve de teto para a despedida de uma pessoa querida por todos naquele pequeno município.

O salão está lotado, apinhado de gente que sempre respeitou dona Maria. Pessoas entram a cada minuto, nunca antes um velório foi tão disputado. O corpo jazia naquele esquife de madeira-de-lei rebuscado com lindos entalhes e as flores a cobriam até o pescoço. Coroas não paravam de chegar em nenhum momento, singelas, mas dadas de coração. Zuleica não conseguia abrir a boca, estava chocada com tudo aquilo, chorava convulsivamente. Não conseguiu dizer nada desde que seu ídolo tinha revelado a verdadeira face. Sentada num banquinho, segurava a bíblia tão forte que chegava á transpirar nas mãos. Apenas pensava: “Linda! Dona Maria está linda!”.

Pela porta, caminhando lentamente, surge Conceição. Seu olhar é alegre, não há lágrimas nem dor. Apenas a felicidade que tentava disfarçar. Seu rosto parecia menos carregado. Vê os olhares reprovadores de algumas pessoas, mas os ignora totalmente. Olha aquela gente toda se engalfinhando para poder observar o cadáver e lembra do velório de sua doce Ivete. Aquelas pessoas que estavam lá são as mesmas que estão agora chorando por dona Maria. Pensa: “Agora é minha vez! Minha vez!”.

Num banco ao lado da mesa de mármore, dona Cida observa os cartazes com mensagens católicas pregados nas paredes. Chama-lhe particularmente atenção a seguinte mensagem: “Não erreis: Deus não se deixa escarnecer; porque tudo o que o homem semear, isso também ceifará.”. Com pesar ela se lembra do marido, que não dormiu em casa esta noite, lembra das brigas que aconteciam frequentemente e da dor da cama vazia pela primeira vez em mais de vinte e cinco anos. Olha então para sua comadre estirada ali naquele ataúde, quase que involuntariamente pensa: “Eu estou sem marido! Mas você... Você está morta!”, não consegue evitar um meio sorriso.

Ao lado do caixão, perto da cabeça, estava Isaura. Seu enorme corpo negro afastava qualquer um que se aproximava. Suas mãos estão timidamente para trás. Derrama lágrimas sem parar enquanto acaricia o rosto de dona Maria ternamente, com delicadeza. Aquela enorme mão negra esfregando naquele rosto alvo. Agora não há mais repúdio, nojo, nenhuma reação. As lágrimas que caem de seu rosto, pingam pela face cadavérica daquela velha que, em vida, repudiava aquela cor de pele. Isaura olha dona Maria e por um instante pensa: “Branca! Eu sempre quis ser branca como você! Mas agora você está aí e eu estou viva.”

Nunca o padre Onofre desprendeu tanta atenção á um velório. Está firme, apesar de sua idade avançada, rezando sem cessar aos pés da mesa em que o féretro repousa. Seu rosto está abatido, acabara de perder uma grande conselheira e um baluarte da cidade. Sempre respeitou dona Maria, como se ela ditasse as normas. Segura firmemente o velho terço ensebado que Maria costumava carregar. Reza por um instante e em seguida o coloca entre as mãos travadas do cadáver. Com um certo desprezo, percebe que a pele está dura. Faz um esforço e finalmente o padre consegue encaixar aquele objeto sacro junto aos dedos daquele corpo sem vida.

Observa o rosto sereno de dona Maria vagarosamente, sem pressa. A multidão não se aproximava, respeitam aquele homem santo. Começa á rezar mecanicamente, sem prestar atenção nas palavras que profere. Enquanto isso, sua mente divaga sem rumo: “Agora, sem você, nossa cidade vai ser mais suja, mais pecadora!”, começa a se lembrar do confessionário, em que sempre fica excitadíssimo com os relatos apimentados que ouvia dos fiéis. “A cidade sem sua proteção vai ser um antro de pecado!”, pensa enquanto ainda reza febrilmente. “As pessoas vão cometer as maiores safadezas sem a sua eterna vigília!”. Finalmente, depois de terminada a oração, padre Onofre tange alvoroçado enquanto pensa: “Eu vou gostar disso!”, neste instante tem uma ereção.

Quando o padre vai deixando a sala, adentra o velho Francesco, o seu Chico. Fumava um cigarrinho de palha que acabara de enrolar. Está calmo, não faz nenhuma feição um pouco mais espevitada. Espera pacientemente sua vez de prestar as condolências para aquela mulher quase santa. Começa então a se lembrar de Júnior, o filho de Maria, que pegara seu pobre cachorro e o torturou até a morte. Na ocasião, Chico não falara nada, mas sempre imaginou que foram por ordens de dona Maria que o garoto fizera isso. Ela nunca gostou do animalzinho que sempre fazia balbúrdia perante seu portão. Nada mais natural do que culpar a criança. Hoje seu Chico sentia-se radiante, olhava de longe aquele nariz proeminente quase saltando do caixão e pensava: “Matou meu cachorro! Matou meu pobre Totó! Agora vai pagar no inferno!”. Aproximou-se do corpo e, discretamente, deu uma baforada de fumaça bem no rosto de Maria, que não podia mais reclamar.

Num cantinho, sem falar com ninguém, está Zefa, a atendente do Pronto-Socorro. Os braços cruzados e recostada na parede, apenas observa o cadáver e pensa: “Nunca mais vai ficar atrapalhando meu trabalho! Ainda bem que morreu, velha!”. Do outro lado, sentadas nos bancos laterais, a carola Fátima fala com Filó, uma velha frequentadora de velórios:

- Não ficou linda? Não ficou parecendo que está dormindo?
Enquanto as lágrimas escorrem por seu rosto, Filó responde:
- Lindíssima! Lindíssima!
Fátima conta orgulhosa:
- Fui eu que preparei o corpo... Mas a senhora acha mesmo que ficou bonito?
Repetiu, enfática:
- Lindíssima!
Com seu enorme corpo obeso, carregando um saco na mão, Carmem oferece uns biscoitos para as duas que conversavam:
- Aceitam? É receita nova. Uma homenagem á dona Maria.
Filó enfia a mão no saco e retira três biscoitos de uma vez:
- Aceito sim... Obrigada, dona Carmem... São do que?
- São de açúcar cristalizado... Uma delícia! – Responde Carmem. – E a senhora, dona Fátima, não vai provar?
Fátima declina gentilmente:
- Obrigado, dona Carmem, mas eu não estou com fome hoje... Velórios me fazem perder o apetite...
Filó morde um e suspira:
- Delicioso! Delicioso!
Carmem agradece e diz, enquanto vai saindo:
- Fico feliz que tenha gostado! Se quiser, eu estou vendendo o cento por treze... Se conhecerem alguém que queira, é só me avisar.

Se aproxima então do ataúde em que sua amiga dona Maria repousava. Não consegue derramar lágrimas, está comendo sem parar os biscoitos de açúcar. Apenas olha, mas seus pensamentos estão flutuando. Olha por olhar, nada vê, nada sente. Enquanto está ali, pensa: “Não posso perder o capítulo de hoje... A Gisele Cristina vai ficar sabendo que o Luiz Fernando dormiu com a Raquel.”.

Ouve-se um bafafá que parece aumentar quando Laurinha, filha de Bernardo, passa pela rua em frente á porta principal do velório. A velha Gertrudes vai até a porta e chama a atenção de Cida, que vai até lá também:
- Olha lá, Cida! A Laurinha... Aquela safada!
Cida concorda:
- É verdade, dona Gertrudes. Ela não tem vergonha na cara! Sair na rua depois de tudo que aconteceu!
- E olha como ela rebola! Parece uma meretriz! – Completa Gertrudes

Laurinha se afasta, não tem a menor idéia do que falavam, mas podia ouvir o alarido esganiçado daquelas pessoas. Pensa revoltada: “Mais um daqueles velhos morreu! Que morram todos!”

O delegado Velasquez chega alguns minutos depois. Com as mãos enlaçadas na altura do abdômen, ele vai em direção ao caixão. Sua feição é de um profissional, um homem público, prestando condolências á alguém muito querido na cidade. Permanece por alguns instantes, viajando em pensamentos dentro de sua cabeça: “Ainda bem que você morreu, sua velha! Ainda bem! Criticou Bernardo que estuprou a filha... Mas era eu que queria fazer isso, eu queria ter possuído minha própria filha!”, em sua mente atribulada, vai ainda mais longe: “Bernardo fez o certo! Já que alguém vai comer a filha, criada com tanto trabalho... Já que alguém vai ter que comer... Melhor que seja o pai!”. Continua ali, entre as pessoas que passavam.

No fundo, Zefa o observa e relata baixinho para uma dona que estava a seu lado:

- A senhora viu? Parece que o delegado espancou o Bernardo... Ele foi parar no hospital... Quase morreu. Deu traumatismo craniano, eu acho.
A senhora a seu lado espanta-se:
- Nossa! Mas ele mereceu, né?
Zefa fica exaltada:
- Merecer, mereceu! Ouvi dizer que ele fez mal prá própria filha, a senhora acredita numa coisa dessas? Prá própria filha!
- Esse mundo não tem mais jeito, não, minha filha! – Conclui a acomodada velha.

Lá pelas tantas, uma mosca pousa no nariz gélido de dona Maria. Cida começa a observar o movimento aleatório do inseto, que esfrega as patinhas e anda pelo rosto já em putrefação. Sente um delicioso frenesi quando a mosca deposita suas fezes sobre a pele sempre limpa de sua comadre.

Horas depois, o momento derradeiro em que o caixão deveria ser fechado estava se aproximando. Zuleica ainda está sentada no banco chorando inconsolável quando Fátima coloca a mão em seu ombro. Ela levanta os olhos arregalados e, tremendo, diz:

- Dona Maria... Não tinha um pecado... Era a pessoa mais pura que conheci... Linda! Ela não está linda?
Fátima responde:
- Sim, Zuleica! Linda!

Zuleica vira novamente o olhar para o chão e continua a chorar. Nada daquilo que dona Maria havia lhe dito pode macular a imagem virtuosa que Zuleica sente por aquela velha senhora. Sua alma parece ter se despedaçado e perdido completamente o último fio de sanidade que ainda possuía.

Antes que o funcionário do velório coloque a tampa sobre a urna funerária, o padre Onofre resolve fazer uma declaração, prostra-se diante de todos, abre os braços e profere:

- Estamos aqui... Amigos... Estamos aqui... Para dar o adeus definitivo para nossa querida dona Maria. Uma pessoa que viveu para a nossa comunidade. Uma pessoa que jamais será esquecida... – Todos prestam atenção enquanto o padre continua a falar: - Esta senhora foi, é e sempre será um exemplo de conduta, autruísmo, respeito e bondade. Uma alma, sem dúvida alguma, sem nenhuma mácula que possa sujar seu santo nome. Portanto, gostaria de comunicar-lhes que...

Dá uma longa pausa, todos permanecem vidrados em suas palavras. Com a voz embargada de emoção, padre Onofre conclui a frase:

- ... Gostaria de comunicar-lhes que... Vou entrar com o pedido de beatificação de dona Maria no Vaticano! Se tudo correr bem... Em breve será canonizada e... – Trêmulo de emoção, o padre dá uma longa olhada no corpo de dona Maria e conclui: - E... Esta senhora se tornará uma santa! Santa Maria de São José das Oliveiras!

Todos começam a aplaudir veementemente. Um clamor inunda aquela gélida sala.

A vida segue então seu rumo natural naquela cidadezinha onde todos se conhecem. Onde sentimentos obscuros são a tônica de uma sociedade que se alimenta da penúria, da desgraça. Uma sociedade que delicia-se em ter como sustento para sua sub-existência a alma do próprio irmão e se encontra no limite da auto-destruição. Uma sociedade que se encontra no limiar da antropofagia.

FIM

DIMITRI KOZMA - 1999

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