“Qualquer coisa estúpida demais para se dizer é dita.”
Voltaire
6 de agosto de 2008
Tudo sobre Luis Buñuel
Estou republicando esse post que saiu no site makingoff. Como ele é fechado para assinantes, achei que não era justo não compartilhar com vocês artigo tão completo sobre o maior diretor de todos os tempos.
Luis Buñuel
(Calanda, 22 de Fevereiro de 1900 — Cidade do México, 29 de Julho de 1983)
RESUMO
Luis Buñuel foi um realizador de cinema espanhol, nacionalizado mexicano[1]. Trabalhou com Salvador Dalí, de quem sofreu fortes influências na sua obra surrealista.
A obra cinematográfica de Buñuel, aclamada pela crítica mas sempre cercada por uma aura de escândalo, tornou-o um dos mais controversos cineastas do mundo, sempre fiel a si mesmo. Buñuel também influenciou fortemente a carreira do realizador conterrâneo Pedro Almodovar.
BIOGRAFIA
Infância e juventude
Luis Buñuel Portolés nasceu ao meio-dia de 22 de Fevereiro de 1900[2], na aldeia de Calanda, Teruel, Espanha. Era filho de Leonardo Buñuel González, um señorito [3] e proprietário abastado que fizera fortuna em Cuba com um negócio de ferragens, e de María Portolés Cerezuela, "a rapariga mais bonita e saudável da aldeia". Pouco depois, a família estabeleceu a sua residência em Saragoça, e só ia a Calanda durante a Semana Santa e nas férias de Verão. Luis era o mais velho de sete irmãos e irmãs, com quem teve uma infância feliz, saudável e despreocupada, em contacto com a rica natureza campestre da sua terra. Teve, desde cedo, uma grande sensibilidade em relação ao inusual e ao extraordinário, e facilmente se encantava com animais, plantas e fenómenos naturais, que observava atentamente, imbuído de uma religiosidade pagã. Foi também na infância que adquiriu um enorme fascínio pela morte, quando inadvertidamente, deparou com um burro putrefacto numa valeta.
Em 1908 viu o seu primeiro filme num cinema de Saragoça. Estudou num colégio de Jesuítas, cuja influência se faria sentir para o resto da sua vida[4]. Com a adolescência, perdeu a fé, tornando-se anti-clerical e ateu, e, em 1915, foi expulso do colégio, tendo terminado os seus estudos secundários no Instituto de Saragoça.
Anos em Madrid
Em 1917, Buñuel foi estudar para Madrid, instalando-se na prestigiada e elitista Residencia de Estudiantes, onde permaneceria até Janeiro de 1925. Aí conheceu várias luminárias das letras, artes e ciências espanholas e internacionais e conviveu com muitos daqueles que fizeram parte da famosa Geração de 27, tomando conhecimento das vanguardas artísticas e literárias da época — cubismo, dadaísmo e surrealismo. Foi também na Residencia que se tornou grande amigo de três camaradas e companheiros de boémia que tiveram nele (e em quem ele teve) uma influência fundamental: Pepín Bello, Federico García Lorca e Salvador Dalí. Nesses anos, Buñuel tornou-se um fanático da cultura física e do atletismo. Frequentava além disso, os cafés de Madrid e as suas tertúlias, bem assim como os seus bordéis.
Em 1920, fundou o primeiro cineclube espanhol. Em 1921, participou na representação teatral de Don Juan Tenorio, de Zorrilla, em Toledo. Em 1922, publica os primeiros textos literários, influenciados por Ramón Gómez de la Serna. Em 1924, depois de ter frequentado, sem grande convicção, vários cursos universitários, acabou por se licenciar em História.
Paris e o surrealismo
Em 1925, foi viver em Paris, onde estudou cinema e trabalhou como assistente de vários realizadores entre os quais Jean Epstein. Conhece Jeanne Rucar, sua futura mulher, com quem se casará em 1934.
Em Janeiro de 1929, Buñuel e Dalí, utilizando o método surrealista do "cadáver esquisito" escrevem o guião do filme que acabaria por ter o título de Un chien andalou (Um cão andaluz). Apesar dos desmentidos, com a sua panóplia de private jokes e sub-entendidos, o filme era um subtil mas evidente ataque a García Lorca[5], de quem se haviam afastado, em parte porque Buñuel (machista assumido) tinha aversão à homossexualidade do poeta, tendo envidado todos os seus esforços para contrariar e sabotar a amizade amorosa que ligava aquele a um complacente Dalí. Buñuel roda-o em quinze dias durante a Primavera sendo estreado a 6 de Junho em Paris, perante a nata da sociedade e da intelectualidade francesa. O filme foi um sucesso e um escândalo e durante várias meses esteve em cartaz no Studio 28. Toda a imagética surrealista (burros podres dentro de pianos de cauda, mãos cortadas, metamorfoses visuais, etc.) criara sensação e espanto. Buñuel refere que a cena inicial da navalha a cortar um globo ocular provocava desmaios na plateia, tendo mesmo chegado a ocasionar um aborto numa espectadora. A dupla é prontamente admitida no grupo surrealista de André Breton, passando a frequentar as suas reuniões semanais e a cumprir escrupulosamente os seus ditames.
No Verão de 1929, Buñuel e Dalí estão em Cadaqués a preparar um novo filme, L'Âge d'Or, subsidiado pelo visconde de Noailles. Mas a sua colaboração e amizade são depressa ensombradas pelo aparecimento de Gala Éluard, por quem Dalí se deixa enfeitiçar e influenciar totalmente. Por outro lado, a antipatia entre Buñuel e a ciumenta e intriguista Gala é instantânea e mútua, chegando aquele ao ponto, de num acesso de cólera, a tentar estrangular. Buñuel regressa a Paris onde acaba o guião e roda o filme (sem dar crédito à colaboração de Dalí), fortemente anti-clerical. Uma vez exibido, cria um enorme escândalo junto da extrema-direita francesa (a sala de cinema é atacada) e da burguesia parisiense (o visconde de Noailles foi ostracizado).
Nessas obras emblemáticas estavam patentes de forma concentrada e intensíssima todos os temas básicos que a sua obra posterior continuaria a reflectir mais discretamente, mas com igual poder: o amor louco, o anti-clericalismo, a rebeldia e inconformismo diante do estabelecido e do convencional, uma ânsia de transcendência, expressos em imagens oníricas e alucinantes, cheias de dureza, de corrosivo humor negro e de uma candura embriagante.
En 1930 viajou a Hollywood, contratado pela Metro Goldwyn Mayer como «observador», com o objectivo de se familiarizar com o sistema de produção norte-americano. Conheceu Charles Chaplin e Serguei Eisenstein.
Las Hurdes
Buñuel voltou a Espanha após a proclamação da República e financiado pelo seu amigo anarquista Ramon Acín, dirigiu, em 1933, um documentário, Las Hurdes, tierra sin pan, que descrevia, de modo cru, a vida quotidiana e os costumes ancestrais de uma recôndita aldeia espanhola da Extremadura, profundamente miserável e em estado quase selvagem. As imagens e os factos descritos eram tão extraordinários e irreais, que acabariam por dar ao filme um cunho verdadeiramente surrealista. Foi um escândalo, desagradando ao governo (esquerdista) espanhol que o proibiu para grande desapontamento de Buñuel, por dar uma imagem corrompida da Espanha no estrangeiro.
Exílio na América
No decurso da guerra civil espanhola exilou-se na França, partindo em 1938 para os EUA, estabelecendo-se em Los Angeles. Em 1941 vai trabalhar como conselheiro e chefe de montagem para o Museu de Arte Moderna (MoMA) de Nova Iorque. Contudo, a publicação em 1942 d'A vida secreta de Salvador Dalí, onde Dalí fala do caso de L'Âge d'Or e expõe as simpatias comunistas de Buñuel, causa um pequeno escândalo e faz com que este tenha de se demitir do MoMA em 1943. Buñuel confronta Dalí e pede-lhe um empréstimo de 50 dólares que o outro, obediente a Gala, recusa por carta, em que simultaneamente faz o elogio de Franco e das virtudes da Igreja Católica. Buñuel jamais lhe perdoará a traição e a mesquinhez. Em 1946, depois de ter estado em Hollywood, acaba por partir para o México.
México
No início da sua fase mexicana realizou filmes comerciais, que nada tinham a ver com os seus interesses mais profundos. Mas, em 1950 recupera a sua autenticidade com Los Olvidados, sobre a vida violenta e dura dos meninos de rua na Cidade do México, onde discretamente insere elementos surrealistas, sendo muito aplaudido pela crítica. Seguem-se Subida al Cielo (1951); o exasperante Susana (1951), sobre uma criada pérfida e intriguista; El Bruto (1952); o espantoso (e muito autobiográfico) Él (1952), sobre um señorito paranóico e louco de ciúmes (com alguma razão...); Robinson Crusoe (1953); Abismos de Pasión (1953), a sua versão de O Monte dos Vendavais); Ensayo de un Crimen (1955); Nazarín (1958), sobre uma novela de Galdós, onde insere elementos anti-clericais e que foi premiado em Cannes.
Viridiana
Em 1960, sob as críticas de outros exilados republicanos, regressou à Espanha para realizar Viridiana. O filme, cuja rodagem o governo de Franco aceitou ingenuamente subsidiar e promover no Festival de Cannes, sem que algum dos responsáveis o tivesse visionado, acabou por se revelar uma paródia impiedosa dos conceitos habituais de caridade e virtude cristãs. Ganhou a Palma de Ouro do Festival de Cannes e depressa causou um enorme escândalo na Espanha, onde foi proibido. Buñuel vingara-se, assim, de Franco de forma absolutamente imprevisível. Apesar do sucedido, Buñuel não foi perseguido pessoalmente na Espanha, onde tinha uma segunda residência.
Regresso a França
O sucesso internacional de Viridiana fez com que os europeus se interessassem pelo já esquecido Buñuel. Depois de filmar no México, El ángel exterminador (1962; O anjo exterminador) e Simón del Desierto (1965), passou a só filmar na França. Ao contrário dos seus produtores mexicanos, o produtor Serge Silberman dava-lhe total liberdade de acção. Teve também a preciosa colaboração do argumentista Jean-Claude Carrière, co-autor de todos os guiões que filmaria na França.
Em 1964, foi produzida a sua adaptação do romance de Octave Mirbeau, Journal d'une femme de chambre, onde Buñuel transporta para a década de 1930 a atmosfera decadente da história, em que uma criada de quarto (Jeanne Moreau) se submete aos caprichos fetichistas, mas inofensivos, do patrão velho (doido por botinas), e resiste tenazmente ao assédio sexual do exasperado patrão novo (Michel Piccoli), acabando por se casar com um criado pedófilo, assassino e reaccionário.
Segue-se Belle de jour (1967; A bela da tarde), segundo uma história de Joseph Kessel, em que uma jovem burguesa (Catherine Deneuve), muito frígida com o marido, se prostitui desavergonhadamente numa discreta casa de passe, dando rédea solta às suas fantasias masoquistas. Nessa ocasião, Dalí enviou-lhe um telegrama a propor-lhe uma sequência de Um Cão Andaluz. Buñuel respondeu-lhe: "Águas passadas não movem moinhos."
Em 1969, filma La Voie Lactée (A Via Láctea, tb. O estranho caminho de São Tiago), relato da peregrinação de dois vagabundos franceses a Santiago de Compostela, onde Buñuel evoca a sua paixão pelo romance pícaro espanhol e onde reflecte ironicamente sobre o cristianismo e as suas múltiplas heresias.
Em 1970 Buñuel voltou à Espanha e à sua amada Toledo para filmar Tristana (Tristana, Amor Perverso), segundo um romance de Benito Pérez Galdós, em que um velho señorito (Fernando Rey) com fumaças de anti-clerical e livre-pensador, seduz a sua ingénua pupila (Catherine Deneuve), vindo mais tarde a cair nas mãos dela, que não deixa de se vingar.
Em 1972, filma Le Charme Discret de la Bourgeoisie (O Discreto Charme da Burguesia), onde a alienação, a arrogância, a falta de escrúpulos, a desonestidade e a amoralidade da burguesia são objecto do seu humor negro. Buñuel introduz no filme pequenos apontamentos e historietas de carácter saborosamente surrealista e onírico. O filme ganharia o Óscar para o Melhor Filme Estrangeiro.
Em 1974, filma Le fantôme de la liberté, conjunto de historietas e episódios puramente surrealistas, que se vão sucedendo à maneira de um sonho.
Por fim, em 1976, roda Cet obscur object du désir, adaptação muito livre de La femme et le pantin de Pierre Louÿs, em que um homem maduro é manipulado e frustrado por uma jovem e desejável mulher, que o atraiçoa.
Últimos anos
Depois de ter filmado Cet obscur object du désir, Buñuel retirou-se. Estava cada vez mais surdo e a saúde começava a faltar-lhe. Sempre fora um grande bebedor e fumador [6], e apesar da sua enorme resistência, começou a sofrer de diabetes e de cancro do fígado.
Em Novembro de 1982, o também muito combalido Dalí (Gala morrera em Junho desse ano), voltou ao ataque, enviando-lhe a seguinte mensagem:
"Querido Buñuel: de dez em dez anos envio-te uma carta com a qual não estás de acordo, mas eu insisto. Esta noite concebi um filme que podemos fazer em dez dias, não a propósito do demónio filosófico, mas do nosso diabolinho. Se te apetecer, vem ver-me ao castelo de Púbol. Um abraço: Dalí".
Resposta de Buñuel:
"Recebi os teus dois telegramas. Fantástica a ideia do filme, mas retirei-me do cinema há cinco anos e quase não saio de casa. É uma pena. Um abraço: Buñuel".
Em 1983 publicou a sua excelente autobiografia, Mon Dernier Soupir (O meu último suspiro)[7], na qual, já próximo da morte, reafirma as suas convicções. À semelhança do personagem Don Lope (o señorito ateu de Tristana), nos últimos anos da sua vida Buñuel, apesar de se declarar ateu, aproximou-se da Igreja, e um dos seus melhores amigos era um padre com quem frequentemente discorria sobre teologia e os mistérios da fé.
Morreu na Cidade do México em 29 de Julho de 1983 e, conforme os seus desejos, foi cremado e as suas cinzas dispersas.
Filmografia
FILMOGRAFIA
Direção:
Esse Obscuro Objeto do Desejo / Cet Obscur Objet du Désir (1977)
O Fantasma da Liberdade / Le Fantôme de la Liberté (1974)
O Discreto Charme da Burguesia / Le Charme Discret de la Bourgeoisie (1972)
Tristana (1970)
A Via Láctea - O Estranho Caminho de São Tiago / La Voie Lactée (1969)
A Bela da Tarde / Belle de jour (1967)
Simão do Deserto / Simón del Desierto (1965)
O Diário de uma Camareira / Le Journal d'une Femme de Chambre (1964)
O Anjo Exterminador / El Ángel Exterminador (1962)
Viridiana (1961)
A Jovem / Joven (1960)
Os Ambiciosos / La Fièvre Monte à El Pao (1959)
Nazarín (1958)
A Aurora / Cela S'Appelle L'Aurore (1956)
A Morte no Jardim / La Mort En Ce Jardin (1956)
Ensaio de um Crime / Ensayo de un Crimen (1955)
El Río y la Muerte (1954/5)
Robinson Crusoe (1953/4)
Escravos do Rancor / Abismos de Pasión (1953/4)
A Ilusão Viaja de Trem / La Ilusión Viaja en Tranvía (1953/4)
O Alucinado / El (1952/3)
El Bruto (1952/3)
Subida ao Céu / Subida al Cielo (1951/2)
Una Mujer Sin Amor (1951/2)
La Hija del Engaño (1951)
Susana (1951)
Os Esquecidos / Los Olvidados (1950)
El Gran Calavera (1949)
Gran Casino – Tampico (1947)
Terra Sem Pão / Las Hurdes (1933)
A Idade do Ouro / L'Âge d'Or (1930)
Um Cão Andaluz / Un Chien Andalou (1928/9)
Co-direção:
¡Centinela, Alerta! (1937)
¿Quién Me Quiere a Mí? (1936)
FOTOS
FONTES: Makingoff, Wikipedia, IMDB e Centenário de Buñuel
Seções: Arte, Cinema, Curiosidades, Surreal, textos
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