Advertência: História forte, gráfica e perturbadora, leia por sua conta em risco.
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Parte 18
Zuleica, boquiaberta, imediatamente parou de falar. Ainda arfando, dona Maria observa o líquido escorrendo lentamente naquela parede rachada pelo tempo. Seu olhar reflete todo o ódio guardado durante sua existência, um ódio irracional por tudo e por todos. Ela cerra os dentes e sua feição toma uma forma quase demoníaca. As mãos permanecem fechadas, contraídas de tensão. As estrelas que pipocavam em seus olhos diminuíram, mas a tontura e a dor no estômago continuavam igualmente fortes. Sua mão parece tremer involuntariamente, como se finalmente tivesse despertado a sua besta interior.
Após alguns minutos observando aquele chá escorrer, finalmente dona Maria, ainda transtornada, espalma suas mãos sobre a mesa, que não caiu por pouco quando ela se levantou subitamente. Zuleica permanece ali sem reação alguma, não tem a mínima idéia do que deve fazer. Maria olha para frente, não focaliza nada, apenas olha para o infinito. Já não existe mais razão. Aquele ato descomedido praticado por ela, de certa forma, fez com que sentisse um tremendo alívio.
Dona Maria diz, com voz quase nula, enquanto uma baba escorre de sua boca:
- Não posso... Mais suportar!
Profere então um grito de desespero, como se acabasse de acordar de um sono letárgico, se libertando de amarras invisíveis. Um brado que transmite uma mágoa incomensurável. Lembrava o grito dos porcos sendo mortos sem piedade nos abatedouros. Depois de mais de setenta anos guardando sentimentos obscuros, depois de viver toda uma vida ostentando um falso semblante de boa samaritana, finalmente dona Maria pode expulsar com veemência aquilo que na realidade sente, berra:
- Malditos! Malditos!
Zuleica não consegue esboçar o menor movimento, está petrificada de terror. Dona Maria então abaixa a cabeça, seus cabelos soltos escorrem por sua face, como se tentasse esconder-se da vergonha que sentia. Suas mãos permanecer apoiadas na mesa, como uma muleta para sua alma. A janela range irritantemente, batendo ao sabor do vento que uiva lá fora. A chuva parece se intensificar, como se ela representasse o estado de espírito de uma insandecida Maria.
Cabisbaixa ela então toma fôlego e começa a falar:
- Eu... – Respira fundo e continua: - Eu... Não posso mais guardar isso comigo... Tenho que falar com alguém... Eu... Não sou normal...
Zuleica nada responde, apenas escuta quando dona Maria finalmente inicia seu relato:
- Eu nunca... Nunca gostei do meu marido... Aquele porco imundo! Nunca gostei dele... Sentia nojo quando ele me tocava... – Faz uma cara de nojo: - Aquele corpo encima de mim... Aquele cheiro que ele tinha... Sem contar quando ele me batia... – Subitamente sorri: - Fiquei feliz quando ele arranjou uma amante e eu não precisava mais dormir com ele.
O suor escorre pelo rosto amarfanhado, dona Maria passa a mão na testa e continua:
- A única coisa que eu não podia aceitar era quando ele... Ele estava dando todo o dinheiro para aquela vaca! – Choraminga: - E eu tinha um bebezinho de colo... – Enfurece-se novamente – Mas aquele maldito não ligava para nada! O Olegário... Só queria saber do seu próprio prazer!
Aperta firmemente as mãos entre a barriga, Zuleica continua estarrecida, escutando aquela confissão. Prosseguia:
- Depois que ela foi embora o Olegário ficou um farrapo! Fumava como um condenado e bebia sem parar... Começou a ficar doente... uma tosse que não parava... Dores pelo corpo... – Dona Maria raspa a unha nas reentrâncias da madeira da mesa, tentando desviar a atenção que Zuleica prestava em seu rosto: - Um dia resolveu procurar um médico e o diagnóstico veio como uma bênção prá mim... – Ergue o rosto orgulhosamente e sorri: - Câncer!
Zuleica ficou assustada com aquela feição. Nunca havia visto uma pessoa se transfigurar tanto assim. Parecia que aquela doce dona Maria já não existia mais, em seu lugar apenas via o olhar da crueldade, estampada naqueles olhos negros. Sem se importar com o que Zuleica estaria pensando, dona Maria segue seu relato:
- Você não imagina como eu gostei dessa notícia... – Seus olhos brilhavam apaixonadamente: - Pouco á pouco o Olegário definhava... Aquele homem forte não existia mais. Em seu lugar havia um velho... Repleto de feridas... Deitado numa cama... Mas você não imagina o que aconteceu...
Pausa por um instante, o ruído das goteiras pingando por toda a sala pareciam bombinhas de São João em dia de festa. Dona Maria ignora aquele som irritante e diz:
- Foi até engraçado... – Sorriu como se fosse contar uma piada e disse: - Eu comecei a gostar dele... Aquele corpo apodrecendo aos poucos me atraía de uma maneira que eu nunca havia sentido antes... Me lembro da primeira vez...
Se lembrando de cada detalhe, revivendo tudo aquilo que havia marcado como uma tatuagem sua vida, ela diz:
- Aquelas feridas cheirando mal... O pus jorrando, encardindo aquela cama que Olegário ficava... – Sorri abertamente: - Eu respirava aquele ar com alegria. Confesso que às vezes ficava algumas horas cheirando os trapos velhos... – Coloca uma das mãos sobre o peito, fecha os olhos e inclina a cabeça para trás. Nem se lembra mais da tontura que sentia, sussurra: - Aquele cheiro de pus misturado com o de mijo... – Quase que tendo um orgasmo, dona Maria faz a exclamação com voz arfante: - Maravilhoso! Maravilhoso!
A bíblia dormia sobre a mesa, Zuleica a segura com força, seu coração batia acelerado como nunca havia acontecido antes. A adrenalina fluía por seu corpo na velocidade de um torpedo. Queria dizer algo, mas havia alguma coisa que a impedia. Estava prestando a maior atenção em cada palavra que Maria pronunciava:
- Quer saber uma ótima diversão que gostava de fazer? Quer?
Zuleica nada responde, mas pensa: “Sim! Conte-me.”, sem esperar resposta, Maria, quase que descrevendo uma brincadeira infantil, conta:
- Eu gostava de deixá-lo dias sem nenhuma comida... Adorava escutar os gemidos secos e desesperados daquele velho! Eu me lembro nitidamente... Moscas despejavam larvas sobre as pústulas abertas... Gostava de ver aqueles bichinhos se arrastando pela carniça!
As lágrimas então começam a brotar e escorrer pelos sulcos do rosto de dona Maria quando ela se lembra:
- Mas... Infelizmente não durou muito... – Enxuga o nariz que escorria, passando levemente as costas da mão e prossegue: - Em menos de dois meses estava terminado!
Numa súdita mudança de humor, ela deixa de chorar e novamente sorri, enquanto tira os fios de cabelo que insistem em escorrer pelo seu rosto:
- Mas ele me deu um último dia de felicidade... No velório!
Zuleica já não fica tão boquiaberta como estava, aquela história que ouvia parecia prender sua atenção.
- Eu chorava como nunca... Me descabelava... Cheguei até á rasgar minha roupa... O Júnior ainda era pequeno, deveria ter uns nove anos... Não entendia direito o que estava acontecendo... A cidade compareceu em massa ao velório do Olegário. Ele era bem conhecido por aqui... Todos estavam lá... Lembro-me de cada um dos presentes...
Dona Maria parecia terna ao contar aquele episódio, transmitia uma docilidade obtusa em seu olhar:
- Dei um beijo naqueles lábios gelados como nunca havia dado em vida... Minha língua passeou pela boca sem vida, pude sentir a aspereza de sua língua enrolada, parecia um bife... Passeei mais por dentro de sua boca e senti cada dente que faltava, acariciei aquela gengiva que estava apodrecida... Descascava... E os pedacinhos de carne podre vieram para minha boca... A baba escorria pelo seu rosto, que estava naquele caixão estreito.
Seu olhar parecia de eterno gozo:
- Estava pendurada naquele caixão, debruçada sobre o corpo de meu marido... Toda cidade chorou ao ver aquela triste cena... Imaginava a dor que eu sentia... – Dona Maria sorri sardônicamente: - Mas não era dor não! Naquele momento em que minha língua estava passeando pela boca de meu marido... Eu senti o gosto adocicado da morte... Então me viciei.
Aquelas imagens estavam nítidas em sua mente como um filme. Repentinamente, sua risada se fecha novamente e ela volta a ficar séria, quase que choramingar. Afasta-se da mesa e vai em direção á porta da cozinha. Zuleica permanece ali, apenas ouvindo. Com os braços em laço, dona Maria é grave:
- Minha alegria tinha acabado ali... Depois que enterraram o Olegário eu estava sem um rumo em minha vida...
Zuleica apenas pensa: “E seu filho?”. Como se fosse possível ler a mente, dona Maria diz:
- Tentei seguir minha vida... Claro que não podia casar-me novamente, apesar de ser jovem ainda... Então dediquei toda minha vida ao Júnior... – Faz uma cara brava: - Apesar de ele ser um porco como o pai!
Vira-se nervosa com o dedo em riste:
- Ele só me atormentava! A vida dele era me dar trabalho! Comia como um leitão! Não tinha modos, sabe?
Volta a entrelaçar os braços:
- Uma vez ele pegou o cachorro do seu Chico... Ele gostava tanto do bichinho... Mas era um cachorro infernal! Fazia uma anarquia aqui na minha porta! – Conta feliz por dentro e ao mesmo tempo indignada: - Torturou o bicho até morrer e espalhou os pedaços por toda casa... Isso são modos? – Sorri um pouco orgulhosa: - Imagina o susto que eu levei quando encontrei a cabeça do cachorro dentro do forno... Coitado do seu Chico... Nunca mais esqueceu do bichinho... – Olha para o lado e diz sarcasticamente: - Mas criança é assim mesmo, né?
Dona Maria para e pensa por um instante se deveria, ou não, falar, estava disposta a soltar a língua e então revela:
- Mas quando ele tinha quinze, dezesseis anos, eu percebi alguma coisa estranha nas atitudes dele... Parecia mais delicado que os outros meninos da mesma idade... – Brada raivosamente: - Meu filho era delicado demais! Como uma mãe pode aceitar uma coisa dessas? Me diga como?
Não obteve resposta. Desesperou-se ao lembrar:
- Uma mãe que cria o filho para que seja um homem! Como uma mãe pode aguentar um filho... – Maria hesita antes de conseguir pronunciar, finalmente toma coragem e diz: - Afrescalhado!
Zuleica comprime a bíblia contra seus fartos seios. Dona Maria continua a falar sem interrupções:
- Ah! Se quer saber a verdade... A única alegria que o Júnior me deu foi o bem-dito acidente com aquele trator... Você não deve saber da história porque era muito jovem na época... Todos nessa cidade sabem que ele trabalhava na lavoura e acabou encontrando um caminhão desgovernado pela frente! Perdeu as duas pernas... – Dona Maria sorri quase que embevecida por sua voz: - Sabia que alguma coisa eu ganharia de recompensa por criar aquele traste inútil durante vinte anos... E que recompensa! Dois anos no paraíso.
CONTINUA
25 de junho de 2010
NO LIMIAR DA ANTROPOFAGIA - Parte 18 - Conto - Dimitri Kozma
Ilha das Flores - Filme curta metragem Completo Grátis
Imperdível curta metragem Ilha das Flores, de Jorge Furtado. Obra prima! É obrigatório assistí-lo!
De acordo com a Wikipedia:
Ilha das Flores é um filme de curta-metragem brasileiro, do gênero documentário, escrito e dirigido pelo cineasta Jorge Furtado em 1989, com produção da Casa de Cinema de Porto Alegre.
[editar] Análise do curta
De forma ácida e com uma linguagem quase científica, o curta mostra como a economia gera relações desiguais entre os seres humanos. O próprio diretor já afirmou em entrevista que o texto do filme é inspirado em suas leituras de Kurt Vonnegut ("Almoço de Campeões"/ "Breakfast of Champions") e nos filmes de Alain Resnais ("Meu Tio da América"/ "Mon Oncle d'Amérique"), entre outros.
O filme já foi acusado de "materialista" por ter, em uma de suas cartelas iniciais, a inscrição "Deus não existe". No entanto, o crítico Jean-Claude Bernardet (em "O Cinema no século", org. Ismail Xavier, Imago Editora, 1996) definiu Ilha das Flores como "um filme religioso" e a CNBB (Confederação Nacional dos Bispos do Brasil) concedeu ao filme o Prêmio Margarida de Prata, como o "melhor filme brasileiro do ano" em 1990. Em 1995, Ilha das Flores foi eleito pela crítica européia como um dos 100 mais importantes curtas-metragens do século.
O curta está listado entre os 1001 filmes para se ver antes de morrer do livro 1001 Filmes para Ver Antes de Morrer
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Dinossauros Vivos
Um dinossauro vivo é encontrado na Nova Zelândia. Deve ser sobra dos dinossauros que atuaram em King Kong, do Peter Jackson...
E aqui a explicação. O Zoológico dos Dinossauros
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