9 de julho de 2010

NO LIMIAR DA ANTROPOFAGIA - Parte 19 - Conto - Dimitri Kozma

Advertência: História forte, gráfica e perturbadora, leia por sua conta em risco.
Comece a ler pela parte 1, clicando aqui.

Parte 19

A imagem lhe vem a mente, aquele garoto cheio de vida, bonito, naquele sujo leito de hospital. Dona Maria era mais jovem, seus cabelos ainda eram pretos como a noite. Sua pele era lisa e suave como um pêssego. Nada se assemelhava a aquela mulher desgastada que falava agora.

Uma oscilação na eletricidade fez com que a luz se apagasse, talvez algum reator tenha se estourado devido aos relâmpagos que pipocavam por toda a parte. Zuleica leva um susto ao ver tudo escuro. Aquela tarde havia se tornado uma noite sombria. Dona Maria não fez nenhuma menção á luz, parecia estar em outro plano, num mundo só dela, que agora era compartilhado por Zuleica, que ouvia tudo aterrorizada. Ainda era possível ver os dois vultos naquela copa, não se moviam, com medo de cair. Zuleica então pede, sem jeito:
- Dona Maria... A senhora tem uma... Vela?
Responde vagamente:
- Sim, vou pegar...

Tateando as paredes ela chega á cozinha, abre uma gaveta que estava bem á mão e pega uma enorme vela, daquelas grossas, de sete dias. A acende com um fósforo e volta para a copa. Quando Zuleica vê o rosto de dona Maria sendo iluminado por aquela luz amarelada, leva um tremendo susto. Parecia fantasmagórica. As sombras formavam um desenho apavorante em seu rosto, que já era sinistro por natureza.

Dona Maria continuava a falar:
- Às vezes achava que estava sonhando... Era tão saboroso prá mim ver meu filhinho daquele jeito, tão indefeso, sem as pernas, com aquele ar melancólico... Não posso descrever o prazer que sentia quando via as lágrimas rolarem pelo seu rosto. – Suspira: - Maravilhoso!
Delicadamente dona Maria pinga um pouco de cera direto na mesa e gruta a vela ali. Zuleica se afasta como uma reação involuntária á aproximação de Maria, que permanece de pé e continua a contar:
- Aproveitei ao máximo aquele que era o momento mais feliz de minha vida... Gostava de colocar as mãos no peito do Júnior para que eu pudesse sentir melhor a dor, a angústia... Podia descrever com detalhes todo o sofrimento que ele passava.

Caminha em direção á janela, observa a chuva caindo, as enormes gotas escorrendo pelo vidro. O vento parecia aumentar cada vez mais, parecia o apocalipse. O trovejar ficava cada vez mais frequente, o que fazia dona Maria aumentar seu tom de voz para poder ser ouvida por Zuleica:
- Gostava de dar banho naquele corpo imóvel e mal-cheiroso... Gostava de limpar a merda mole que ele fazia na cama... – Maria sorri ao lembrar-se: - Mas o que eu mais gostava mesmo era de mexer naqueles tocos de perna infeccionados, sob o pretexto de trocar os curativos... Eu me deliciava! Aquelas moscas varejeiras passeavam por todo o quarto... Eu acariciava aqueles tocos tão delicadamente, sentia uma vontade de lambê-los... – Um pouco frustrada confessa: - Mas eu não cheguei a fazer isso...

Zuleica esboça uma cara de nojo em virtude a toda aquela depravação que lhe era despejada em seus ouvidos. Sente uma ânsia revirando seu estômago. Fazendo um desenho ao acaso no vidro embaçado, dona Maria começa a se entristecer novamente:
- Quando chegou a hora dele partir... Me vi novamente sem rumo, desnorteada!
Se transfigura novamente e vira-se para Zuleica:
- O velório? Ah... O Velório... Foi lindo, sabe? Ele recebeu cada coroa linda! Uma mais bonita do que a outra... Todos estavam lá... Nossa cidade tem essa característica... Todos são amigos nos momentos de dor...

Verifica que uma goteira pingava a seu lado. Dona Maria então coloca a mão embaixo, os pingos estavam grossos. Com aquela água em sua mão, molhou o rosto que estava quente e vermelho. Sentiu o suave frescor da chuva banhando sua face. Em sua mente, a imagem do velório do filho não consegue mais apagar-se. Ela se recorda:

- Acariciava aquela pele gelada... Sabe, se pudesse eu guardaria aquele corpo aqui em casa, no meu quarto, para me fazer companhia nas noites frias. Já pensou se isso fosse possível? Guardar os corpos de nossos parentes conosco para que possamos sempre nos lembrar deles? Não seria divino?
Pensa por um instante, imagina-se com todas as cadeiras daquela copa apinhada de cadáveres. Sua mãe, seu pai, Olegário e Júnior. Todos sentados ali lhe fazendo companhia quando se sentisse solitária nas noites insones.

As lágrimas parecem não acabar. A dor eterna da desgraça que permeia a vida de dona Maria é algo infindável. A luz finalmente retorna, mas a vela permanece acesa. Zuleica está boquiaberta diante da verdadeira face daquela senhora que é amada por toda cidade. O choro parece trazer algum acalento para aquela sofrida mulher, que nutria em seu interior um profundo ódio por todos. De costas para Zuleica, dona Maria pronuncia, quase que sem forças:

- Eu sempre vivi atraída pela desgraça dos outros... Quero que todos á minha volta sofram como cães... – Coloca a mão em frente ao rosto, envergonhada: - Eu fico feliz quando alguém está sofrendo, entende? Eu sinto alegria apenas quando alguém sofre... É como se eu me alimentasse um pouco da alma daquele que está pior que eu...
Zuleica finalmente se levanta, espantada enquanto dona Maria fala:
- Eu sei... Sei que não sou normal... Sou... Um monstro!

Levada por uma momentânea vertigem, causada pelo seu desvario ou por seu diabetes, dona Maria cambaleia e se apoia na parede para não cair no chão. O suor começa a escorrer pela sua velha face, a alma está em frangalhos. Estranhamente o coração se encontra, ao mesmo tempo, dolorido e radiante. Com a mão no fronte, ela solta um gemido de dor. Suas pernas se bambeiam e seus pés parecem não caber mais dentro daquele chinelinho. As varizes parecem ter vida, saltitando e latejando, fazendo-a quase desistir de ficar em pé.

Como se mergulhasse num profundo estado de exaltação permeado por um enlevo quase infinito, dona Maria arregala os olhos marejados e, sob o olhar atemorizado de Zuleica, começa a gargalhar, como se estivesse prestes a se defrontar com algo á muito tempo aspirado.

A saliva escorre por sua boca carcomida quando ela brada:
- O momento chegou... Zuleica... Você vai presenciar aquilo que esperei por toda minha vida... – Os cabelos de dona Maria se alvoroçam novamente, ela parece não se importar, continua a gritar: - O momento máximo e mais maravilhoso da existência carnal!

Temendo os atos daquela mulher ensandecida, finalmente Zuleica tem coragem de intervir:
- Dona M-Maria... Eu... - Pronuncia quase num murmúrio quando é interrompida:
- Não fale nada agora! Por favor... Não quebre o encanto! – Grita dona Maria.

Então o silêncio de vozes impera dentro daquela casa. Os pipocos das goteiras podem ser ouvidos lá dentro. Por fora, o som da chuva lava as ruas de pedra da cidade, trovões de todas as intensidades podem ser ouvidos e o barulho do vento chacoalhando as árvores frutíferas parece nunca mais ter fim.

Caminhando a passos lentos, segurando-se nas paredes para não cair, dona Maria vai em direção á cozinha. Lá, olha mais uma vez o pinguim sobre a geladeira, foi um presente de casamento. Observa os ladrilhos que revestiam as paredes e olha o coloridos daquelas flores estampadas. Da copa, Zuleica pode escutar o ruído da armário da cozinha sendo aberto. Era um velho armário com uma porta de correr que insistia em emperrar. Era ensebado, fazia muito tempo que dona Maria não o abria, pode-se perceber algumas teias de aranha abandonadas. Observa aquele armarinho repleto de bugigangas inúteis até encontrar o que almeja. Os dedos de dona Maria seguram firmemente um pequeno frasco empoeirado que repousava ali, no fundo do armário, há décadas.

Volta então para a copa, no caminho faz um enorme esforço para abrir aquele vidrinho. Chegando lá, Zuleica se assusta ao ver o que ela carregava nas mãos, mas não disse nenhuma palavra. Com algum esforço, dona Maria desrosqueia a tampa emperrada. Um cheiro forte passeou pelas narinas das duas, ressecando suas gargantas. Zuleica coloca a mão em formato de concha sobre a boca e o nariz, tentando evitar sentir aquele odor. O que, diga-se de passagem, é uma tarefa difícil, quase impossível.
Utilizando o conta-gotas que vinha junto com a tampa do frasco, dona Maria despeja alguns pingos do líquido na xícara de chá que Zuleica havia bebido, o cheiro ficou mais forte. Ainda havia um pouco do chá ali, mas dona Maria completou a xícara despejando do bule o que faltava.

Nenhuma palavra, nada. Zuleica temeu por sua segurança ao ver aquilo, mas resolveu aguardar para ver até que ponto ela chegaria. Com as mãos segurando firmemente aquela xícara, dona Maria fecha os olhos e abaixa a cabeça. As lágrimas fluíam de uma maneira natural, não havia sinal nem de ódio, nem de ternura. Seu rosto era opaco, como uma tela em branco. Não havia nenhum sentimento refletindo em seu semblante naquele momento. De uma maneira quase que sagrada, ela bebe com um só gole aquela mistura amarga de chá e formicida.

Imediatamente a xícara foge de sua mão, caindo e se estilhaçando. O ruído do vidro partindo-se provoca um sobressalto em Zuleica, que não sabe o que fazer diante de cena tão bizarra. Sem nenhuma reação, ela apenas grita em pânico. Apoiada na parede, escorregando aos poucos está dona Maria. Com um fogo infernal queimando por dentro, sofrendo de fortes convulsões, perante a um fim iminente, ela conclui, em meio á tosses secas:
- É como... Eu... E-Esperava...

A garganta parece estar se dissolvendo quando percebe o gosto de sangue em sua boca. Uma ânsia invade seu estômago, que revira-se como uma batedeira. A tosse se intensifica até o limite do insuportável enquanto a tempestade que cai lá fora abranda aquele momento. Aquele ardor que latejava seu corpo parecia purificar sua alma. Os olhos quase saltavam de suas órbitas enquanto ela ia escorregando, com as costas na parede, até alcançar o chão. Ainda permanece sentada, sentindo cada instante de sua hora derradeira. Zuleica não tem coragem de se aproximar, fita tudo de longe, berrando sem controle.

Apesar dos olhos arregalados dona Maria transmite uma certa pureza em sua maneira de observar aquilo tudo. Uma goteira pinga em sua cabeça, a água se mistura com o suor e a saliva. Pouco a pouco, entre fortes espasmos, ela vai tombando no chão. Uma baba espessa e amarelada vaza de sua boca enquanto tosse. O pescoço parece pulsar e dá a impressão que vai explodir á qualquer momento. As mãos acariciam o estômago que parece não mais ter vida fluindo. Pouco á pouco a tosse vai diminuindo. As convulsões se abrandam. O movimento fica cada vez menos frequente. É ouvido então um suspiro, um último suspiro, aliviado.

Finalmente, perante o olhar atônito de Zuleica, dona Maria cala-se para sempre. Em seu rosto, um semblante satisfeito. Como se estivesse refletindo um sentimento de dever cumprido. Uma vida repleta de felicidades. Aquela boca que escorria uma gosma pegajosa parecia sorrir. Os olhos arregalados repletos de veias estouradas, tinham um brilho intenso, parecia cristalino, espelhado. Na morte aqueles olhos estavam cheios de vida. A chuva permaneceu durante aquela tarde inteira, lavando definitivamente as ruas de São José das Oliveiras.

CONTINUA

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