3 de junho de 2010

NO LIMIAR DA ANTROPOFAGIA - Parte 17 - Conto - Dimitri Kozma

Advertência: História forte, gráfica e perturbadora, leia por sua conta em risco.
Comece a ler pela parte 1, clicando aqui.

Parte 17


O céu estava nublado, dona Maria andava á passos largos pela rua, rumava em direção à casa da solteirona Zuleica, levava uma sombrinha florida para se precaver de uma eventual chuva. O vento assobiava e chacoalhava as vestes daquela velha senhora que avançava a muito custo. As folhas secas planavam leves por toda a rua, sem direção. Finalmente chega á porta de Zuleica. Bate palma chamando-a e é prontamente atendida:
- Dona Maria! Que prazer a senhora aqui... Entre por favor, vou preparar um chá... – Diz Zuleica, que usava um lenço na cabeça.
Dona Maria estava com um olhar nunca antes reparado por Zuleica, parecia exultante, não tinha mais aquele semblante triste que sempre a caracterizou. Vai direto ao assunto:
- Não, obrigado, Zuleica. Bem, gostaria que fosse até minha casa hoje á tarde... Quero conversar com você.
Ainda estranhando aquela fisionomia, imaginando que havia alguma coisa diferente ali, Zuleica responde:
- Claro que eu vou, mas a senhora não poderia me adiantar nada?
- Não posso... Apareça em casa depois do almoço, sim? A gente toma um chá com biscoitos e conversa um pouco...
Zuleica, que via em dona Maria um ídolo, prontamente aceita o convite:
- Combinado!
Olhando para o céu, as nuvens pareciam mais acinzentadas, temendo a chuva que se aproximava, dona Maria diz:
- Bem... Parece que vai cair um pé d´água dos diabos... Acho que já vou indo. Zuleica, estarei te esperando, certo?
Confirma:
- Claro! Nem que chova canivete, eu estarei lá.
Despedem-se e dona Maria volta para sua casa. Parecia feliz. A chuva não vem, os céu escurece cada vez mais, mas nada de chuva. O mormaço quente parece que aumentou, tornando-se insuportável ficar em casa com as janelas fechadas.

O almoço, dona Maria prepara com um esmero nunca antes prestado. Frita um enorme bife de alcatra com dois ovos estrelados por cima. Fazia muito tempo que dona Maria não comia carne, seu estômago frágil não permitia, além do mais, repetia sempre a frase que aprendera não se sabe onde: “carne dá câncer”. Mas hoje estava sentindo uma estranha necessidade de sorver qualquer tecido animal. Se empanturra daquele alimento com uma sofreguidão de dar inveja ao maior dos glutões. Enquanto comia, pensava: “Estou comendo câncer. Estou comento pelotas de gordura que vão virar um câncer dentro de mim.”, ruminava aquela carne dezenas de vezes, quando a ingeria, pensava: “Estou engolindo um tumor!”. Á medida em que comia, ia mastigando cada vez menos. Esta idéia fixa não saía de sua cabeça. Parecia que sentia o gosto do carcinoma sebento em sua boca cada vez que mordia aquela carne. Os últimos pedaços, dona Maria engoliu praticamente inteiros, sentindo, com enorme dificuldade, aqueles nacos passando por sua estreita goela.

Após comer, percebe que alguns fiapos de carne ficaram presos em sua gengiva, aquilo doía muito. Quando ela coloca o dedo, percebe um enorme buraco, uma cratera, em seu dente. Era uma cárie enorme, que corroeu até a raiz. Seus amarelados dentes eram fracos, restavam apenas alguns, a maioria foi extirpada quando era mais jovem. Ironicamente parecia não se importar com aquilo, fez pouco caso. Abriu a geladeira e havia um pouco de doce de leite, comeu tudo com fatias de queijo fresco. Parecia não se importar com o seu diabetes.

Em seguida, vestiu sua melhor roupa, um casaco de tricô tecido por sua mãe há muito anos. Abriu a caixinha de jóias e espetou sobre o casaco um broche de borboleta, cravejado com pedrinhas reluzentes que imitavam diamantes. Abriu a porta dos fundos e deu uma volta pelo quintal, as folhas espalhadas estavam voando como num rodamoinho, pareciam bailar. Virou-se para a roseira que acabara de florescer, delicadamente alisa uma das flores que desabrochara. Seu olhar é terno, sereno, parecia melancólica. Colhe algumas folhas de camomila com uma tenuidade inédita para ela. A roupa se alvoroçava no varal, ela olhou para o céu e viu que o dia estava virando noite. Enormes nuvens cobriam o sol e escureciam toda a cidade. Com muita calma, ela volta para dentro de casa e liga o fogo, colocando uma panelinha com água para ferver. Em seguida senta-se no sofá e fica á espera de Zuleica.

O relógio marcava uma hora e alguns minutos quando dona Maria ouviu palmas no portão. Era Zuleica, berrando para abrir, pois tinha começado a garoar forte e não tardava a advir uma tempestade. Dona Maria abre a porta calmamente, cumprimentando a amiga mais jovem. Zuleica, por sua vez, era mais elétrica, trazia um guarda-chuvas numa das mãos e a inseparável bíblia na outra, debaixo do braço carregava uma caixa:

- Dona Maria! Vim o mais rápido que pude... Saí correndo porque começou a chover... Nossa, estou toda suada... – Dizia Zuleica enquanto entrava pela porta, chacoalhando um pouco o guarda-chuva e deixando-o aberto no chão da varanda.
Dona Maria, não esboçava muito sentimento. Apenas observava com o olhar vago. Ofereceu:
- Quer um chá, Zuleica? Estou acabando de ferver a água.
- Aceito... Se não for muito incomodo. – dizia enquanto esfregava as mãos pelo corpo tentando se secar.

Lentamente dona Maria vai até a cozinha, no caminho passa pelo quadro em relevo da “Santa Ceia” que estava pendurado sobre a porta, quase no teto. Olha aquela cena, que já havia visto muitas vezes, como se fosse a primeira. Percebe a imagem de Jesus Cristo segurando aquele cálice sagrado, os apóstolos a seu lado. Uma imagem que sempre estivera em seu inconsciente, mas que nunca havia reparado na beleza daquela representação. “Jesus! Como você é bonito.” Pensa ela, já entrando na cozinha e colocando as folhas de camomila na água fervente. Para puxar assunto, gritou, perguntando para Zuleica, que estava na sala:

- Me diga, Zuleica, como vai a vida?
Enquanto terminava de esfregar as mãos pelo corpo, a solteirona berrou de volta:
- Vamos indo, dona Maria... Vamos indo. Mas eu fiquei chocada com a dona Cida.
Já aguardando o que viria, enquanto coava o chá numa peneira sobre um velho bule amassado, dona Maria pergunta:
- Mas o que aconteceu?
- Foi hoje cedo prá delegacia... Ela disse pro delegado que vai se separar do marido. – diz Zuleica, já aparecendo na porta da cozinha, olhando para dona Maria.
- Não me diga! O marido dela é safado... Merece! Coitada da dona Cida, né? – Termina de colocar o chá no bule e deixa a panelinha encima do fogão. Em seguida pega a bandeja que já estava preparada, com duas xícaras, colheres e um lencinho rendado como apoio.
- Eu rezei tanto para que o marido dela, o seu Germano, parasse de beber para que ela pudesse ter paz... E agora a senhora viu o que aconteceu? – Dizia Zuleica, apoiada na porta.
- Sim... Sim... – Dona Maria parecia avoada. Não ouvia muito o que Zuleica dizia. Pegou um recipiente de vime e colocou alguns biscoitos doces cobertos de açúcar que estavam num vidro tampado á rolha.

Zuleica permaneceu ali, observando, quando então se ofereceu para ajudar:
- Dona Maria, posso ajudar?
- Leve isso para a mesa da copa. – Dizia enquanto lhe entregava a bandeja com o chá e os biscoitos.
Prontamente Zuleica fez o que dona Maria lhe pediu. E foram as duas para a copa, conversar. Zuleica estranhou, dona Maria não havia colocado ao menos uma toalha de mesa. Justo dona Maria, que sempre se preocupou com os detalhes, mas Zuleica não disse nada á respeito.
Trocando amenidades, o chá segue seu ritmo calmo. A chuva parecia aumentar e dona Maria teve que acender a luz da copa, pois lá fora ficava cada vez mais escuro. Uma tarde sombria, realmente uma tarde que há muito tempo não acontecia naquela cidade.
Dona Maria comia um biscoito atrás do outro, Zuleica lhe chama a atenção delicadamente:
- Dona Maria... A senhora não acha que está exagerando no doce? Não se lembra do seu diabetes?
Enquanto devora mais um, a velha faz pouco caso:
- Ora... Que diferença vai fazer uns biscoitinhos? Agora me conte, Zuleica... Como vai a Laurinha? Faz tempo que não á vejo...
Zuleica bebe um gole do chá, mas está muito quente e o coloca novamente sobre o pires, responde então:
- Ouvi dizer que ela já saiu do hospital... Está morando sozinha naquela casa. Fui tentar conversar com ela, mas ela não queria falar comigo. Me destratou, veja a senhora!
Enquanto agita o chá com uma colher, dona Maria diz, ternamente:
- Você é uma santa. Zuleica! Não dê bola para ela... Isso é inveja. Ela queria ser uma pessoa imaculada como você é.
Lisonjeada, Zuleica responde:
- A senhora é que é uma santa. Dedica sua vida á Deus e aos necessitados. Vive só para isso... A senhora deveria ser canonizada.
Ia levando a xícara á boca, mas para o braço no meio do caminho e fala:
- Exagero seu, Zuleica... Eu sou como qualquer outra pessoa...
- Imagine só se é... A senhora é a pessoa mais pura e generosa que eu já conheci... Eu queria ser como a senhora... Esse é meu sonho. – Alegra-se ao dizer isso, uma declaração de admiração deslavada.

Dona Maria desiste de beber o chá, coloca-o novamente sobre o pires, fecha os olhos, dá um forte suspiro e com muita dificuldade conta:
- Eu... Eu estou cansada de viver nesse mundo...
Zuleica concorda enquanto sopra para esfriar o chá, a fumaça faz um bonito desenho no ar:
- Sim... Um mundo onde só existe a maldade... Pessoas santas como a senhora sofrem pelo bem da humanidade...

Maria nada diz, apenas fita a xícara, segurando-a com as duas mãos, seu olhar é vago, quase um olhar cadavérico. A dor em seu estômago começa a voltar, trazendo um pouco de impaciência. Aquela tontura que sentia quando exagerava no açúcar estava voltando á galope. Zuleica continuava a falar sem parar:
- Onde já se viu viver num mundo assim? Onde as pessoas querem sempre o mal das outras. Pessoas matam sem limites... Outros traem... Um mundo onde as pessoas não conhecem Deus, todo poderoso. – Aquela fala de Zuleica vai se tornando monótona e repetitiva: - Porque é Deus, e somente Deus, que pode curar essas pessoas da inveja, da maldade, da estupidez. Deus é único! Porque sem temer á Deus, o homem vai se destruir...

As palavras proferidas por Zuleica parecem que flutuam pela cabeça de dona Maria. Ela não está prestando atenção no que ela diz, apenas escuta o som da voz. Um som esganiçado, irritante até, mas um som familiar. É isto que importa no momento para dona Maria, escutar um som que ecoe familiar em seus ouvidos. A tontura fica cada vez mais forte, a sua vista começam a fulgurar estrelas multicoloridas. O barulho da chuva, que cai forte, batendo na janela, ajuda a dar um ritmo a este espetáculo audio visual, um pandemônio de luzes e sons que já não fazem mais sentido algum. Enquanto isso, Zuleica não parava de falar um minuto sequer.

Aquilo começou a subir á cabeça de dona Maria de tal forma, de uma maneira tão obtusa, que num rompante inesperado, com toda a força que ainda lhe restava, derruba a cadeira ao levantar-se e atira furiosamente a xícara que tinha entre as mãos em direção á parede. Os cacos voaram para todos os lados, espalhando o chá ainda quente por toda a copa.

CONTINUA

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