11 de maio de 2010

NO LIMIAR DA ANTROPOFAGIA - Parte 15 - Conto - Dimitri Kozma

Advertência: História forte, gráfica e perturbadora, leia por sua conta em risco.
Comece a ler pela parte 1, clicando aqui.

Parte 15

Entra na sala de Velasquez berrando:
- Delegado! Seu Bernardo violentou a Laurinha!
Estava se equilibrando apenas nos dois pés da cadeira e quase vai ao chão com o susto que levou:
- O quê?
- Isso mesmo que o senhor está ouvindo! O seu Bernardo violentou a Laurinha! – Repete dona Maria.
- Meu deus! – Levanta-se e diz: - Mas... Isso é muito grave. Como a senhora soube?
Pensa por uma fração de segundos e responde:
- Foi ele mesmo que me confessou... Disse para que não contasse a ninguém... Mas não posso deixar isso passar em brancas nuvens... O senhor deve fazer alguma coisa...
Velasquez vai pegando a chave e grita:
- Vou falar com ele...
Mas dona Maria segura seu braço, dizendo:
- Não adianta... Ele jamais vai confessar. Eu prometi que não falaria nada... Mas... A justiça deve estar sempre em primeiro lugar.
Tentando encontrar uma saída, o delegado pensa e então sugere a si próprio:
- Então acho que seria melhor falar com a Laurinha... Ela deve confirmar...
A velha dona Maria o interrompe mais uma vez:
- E o senhor acha que, em sã consciência, um filho vai acusar um pai? Acha? Ora, delegado...
- Mas, como podemos fazer? – Diz Velasquez, relutante, transparecendo ser um delegado sem a menor experiência.
- Simples. – Diz ela escondendo um sorriso. – O senhor deve acreditar em mim... Se o senhor confiar em mim, sabe que isso é verdade...
Ele a olha por alguns instantes, tem medo da retaliação do povo se essa notícia se espalhar e ele, como delegado, não tomar nenhuma atitude. Tem medo de que descubram que ele não tem nenhuma autoridade nem pulso firme para gerir aquela delegacia. Conhecia dona Maria de longa data e sabia que ela iria espalhar a notícia pela cidade. Aquilo o fazia tremer. Finalmente depois de relutar por alguns instantes, resolve:
- Certo! Claro que eu acredito na senhora. Amanhã mesmo vou mandá-lo para a penitenciária na cidade de Passos Dourados, acho que não podemos mais mantê-lo aqui...
Dona Maria se vira de costas para o delegado e esgarça um maravilhoso sorriso, tentando se conter, ela volta-se para ele:
- É assim mesmo que se faz, delegado. Parabéns.
- Espero que estejamos fazendo a coisa certa, dona Maria... – Fala o delegado Velasquez, ainda inseguro.
- Pode ter certeza que esta é a melhor solução. – Conclui dona Maria.
Despedem-se e ela sai da delegacia radiante, certa de ter cumprido mais uma boa ação á comunidade, expurgando mais um fruto podre de seu belo município.

Voltando à praça, dona Maria vê um bafafá estranho, percebe que está havendo um bate-bocas tremendo. Quando se aproxima mais, vê dona Cida e dona Carmem, uma gritando com a outra de uma maneira quase irracional. Em volta, diversos curiosos assistem a aquele bizarro duelo entre duas senhoras desbocadas. As palavras parecem tomar forma no ar: “Vagabunda mentirosa!” – “Corna! Chifruda!” – “Vai cuidar do seu marido!” – “Vá á merda!” – “Vai você! Trouxa! Chifruda!”. Aquele desfile de atrocidades que as duas pronunciavam parecia não ter fim, os ânimos estavam exaltados e por pouco não saiu tapa daquela discussão.

Dona Maria permanece ali, junto com os outros curiosos que queriam saber o que estava acontecendo ali. Mas Maria já sabia de tudo. Fora ela que havia plantado a semente da discórdia. Estava feliz em ver aquelas duas gordas velhas se digladiando sem pudor. Ali, no meio do povo todo. Um espetáculo gratuito, um circo.

O nível da discussão começava a diminuir cada vez mais. Mas dona Maria não queria se envolver, na verdade não poderia se envolver de maneira alguma, pois estava metida até o pescoço nessa confusão. Palavras de baixo calão eram pronunciadas de maneira mais direta, o povo se deliciava ao ver tamanho espetáculo repleto de grosseria.

Dona Maria começa a imaginar como seria maravilhoso ver aquelas duas leitoas gordas rolando no chão, uma mordendo a outra até arrancar pedaços. O sangue jorrando pelos poros. A roupa se rasgando e as duas nuas no meio da praça dando uma exibição de luta livre. Aquelas duas velhas guerreando até a morte naquela grama verde impregnada de fezes de cachorros. Imagina as unhas rompendo a pele branca, os seios flácidos sendo amputados apenas com a força das presas.
Mas ao cair na real, já estava tudo apaziguado. Alguns homens fortes conseguiram segurar as duas e levá-las para sua respectivas casas. Com enorme dificuldade, claro, pois elas não queriam encerrar aquilo de maneira nenhuma. Dona Maria olha para os homens que seguravam as duas velhas e pensa: “Estraga prazeres!”
Findo o burlesco espetáculo, os curiosos se retiram, não havia mais nada para se ver ali.

De tarde, resolve ir visitar dona Cida, quer saber o que aconteceu. Almoça uma abobrinha refogada que preparou ás pressas e sem delongas vai até a casa da comadre.
Ela atende a porta inchada de tanto chorar. Nunca, em todos esses anos que dona Maria a conhecia, viu dona Cida assim. Ela recebe sua comadre com uma visível indisposição, mas dona Maria não percebe, ou pelo menos finge não perceber, e diz:
- Dona Cida... Como a senhora está?

Ela pede para a comadre entrar com um sopro de voz:
- Entre, dona Maria... Não quero ficar aqui na porta...
Sentam-se no sofá da sala, a casa está um pouco suja, nada muito grave, mas não está aquele brinco que costumava ficar. Dona Cida tenta ser educada:
- Aceita um chá, dona Maria?
- Não, obrigada, vim ver como a senhora estava...
Olha para o teto, dá um longo suspiro e diz:
- Não estou muito bem, não, comadre... Eu acho que aquilo que a senhora me falou sobre o Germano era verdade...

- Porquê? O que foi que a senhora soube? – Pergunta dona Maria, com as mãos sobre o joelho.
- A Carmem... Estava passando pela praça e me xingou! Disse cada nome... Me chamou de chifruda, de corna... Ela deve saber de alguma coisa...
Dona Maria fica cintilante:
- Com certeza deve saber... Mas de que adianta saber mais? De que adianta? Seu marido é como qualquer outro homem... Um safado sem-vergonha... A senhora acha que vale saber mais para sofrer mais com a verdade?
Reluta:
- Bem... Não sei...
Dona Maria responde:
- Pois eu digo: Não vale, dona Cida!
Cida olha para uma pegada de lama seca no tapete e se lembra de contar:
- Ontem... Nós tivemos uma briga horrível... Ele chegou tarde em casa, fedia como um gambá... Mas não tinha bebido... O pé dele estava todo sujo de barro... Disse que o pneu do caminhão furou...
- Desculpa! Todos inventam desculpas! – Berra dona Maria.
- Pois eu também achei isso, então comecei a gritar com ele... Disse que ele tinha uma amante... Ele ficou nervoso, quase me bateu... Mas o Germano nunca levantou a mão prá mim, e não foi dessa vez que ele iria fazer isso...
Inerte no sofá, Maria fica nervosa ao ouvir aquilo, pensa: “Nunca bateu nela? Que marido frouxo é esse?” a interrompe:
- Eu acho que o casamento de vocês não tem mais futuro...
- Mas...
- Isso mesmo, dona Cida... Acho que é melhor cada um ir para seu lado... Você vê meu caso, por exemplo, eu não tenho mais marido e que falta me faz? Nenhuma! – Completa dona Maria, dando uma de conselheira sentimental.

- Mas... A senhora acha mesmo que eu devo me separar dele? – Pergunta a transtornada Cida.
Aproxima-se da comadre e aconselha:
- Olha... Na bíblia está escrito... A mulher deve ser submissa ao marido... Mas que marido é esse que trai? Que marido é esse? Ele é um canalha! Eu no lugar da senhora pedia a separação urgente...
Mas dona Cida se lembra, e cutuca dona Maria:
- Mas... A senhora não ficou com o Olegário mesmo sabendo que ele traía?
Meio sem-jeito, dona Maria acaba admitindo:
- Sim, é verdade... Mas minha história foi diferente...
- Como assim? – Pergunta Cida.
- Ele era um homem doente... Eu não podia me separar dele enquanto ele definhava aos poucos... Não eu! – Para por um instante e continua: - Mas o Germano é saudável... Não é?
- Fora o problema da próstata, ele é... – Diz dona Cida.
- Pois então... Não há nada que segure a senhora e a mantenha casada com ele... Nem filhos vocês tiveram...

Quando dona Maria fala isso, Cida começa a se emocionar, seu rosto que já estava inchado de tantas lágrimas, toma uma feição ainda mais triste. Ela, depois de limpar o nariz que escorria, diz:
- Eu perdi dois filhos ainda na barriga, estavam bem pequenos... Perdi um com dois e outro com quatro meses... Nunca mais tentamos... Quer saber a verdade... Faz mais de vinte anos que o Germano não me toca! Mais de vinte anos!

Uma alegria invade o espírito de dona Maria, que se esforça enormemente para não demonstrar isso:
- Mais uma prova de que ele tem uma amante... Uma amante ou várias... Vai saber...
Cida continua suas lamúrias:
- Eu as vezes passo as noites pensando como seria bom tentar mais uma vez... Mas ele me disse que estava impotente. Que não conseguia mais fazer... E eu fui deixando... Nunca imaginei que poderia ter uma amante. Nunca!
- Pois então... Faça isso! Separe-se dele! Sua vida vai melhorar muito. Muito mesmo!
Relutante, dona Cida aceita:
- Está bem, dona Maria... Eu vou fazer isso...
- É assim que se fala...

Dona Maria se levanta e se despede da comadre. Observava aquela mulher, que não era tão velha, deveria ter uns cinquenta e cinco, sessenta anos, no máximo. Em seu subconsciente ela pensava: “Sim! Isso mesmo! Separe-se! Se eu não tenho marido! Porque você deve ter? Sua velha gorda! Eu quero ver você engordar até explodir depois que se separar daquele bêbado nojento!”. Vai até a porta e diz:
- Estou torcendo pela senhora, dona Cida!

Sai feliz por ter conseguido arrebatar mais uma fiel que se dedicaria em tempo integral á igreja e a comunidade. Um sentimento de missão cumprida permeava sua alma.


CONTINUA

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Related Posts with Thumbnails
2leep.com