25 de março de 2010

NO LIMIAR DA ANTROPOFAGIA - Parte 11 - Conto - Dimitri Kozma

Advertência: História forte, gráfica e perturbadora, leia por sua conta em risco.
Comece a ler pela parte 1, clicando aqui.

Parte 11

Acordou lépida e fagueira e já saiu de casa para contar as novidades para dona Cida, sua comadre, que não estava presente na novena da noite anterior. Antes disso passa em frente a casa de Conceição, nenhum sinal, nada, ela não saiu de lá. Nem cheiro de gás a casa exalava, “Quem sabe não tenha se matado com veneno?”, pensa dona Maria, tentando uma explicação que a convencesse de que Conceição estava morta, mas um barulho de dentro da casa a fez perder as esperanças. Conceição vivia.

Ruma em direção a casa da comadre que prontamente abre a porta. É hora do almoço e dona Cida sempre foi uma ótima cozinheira.

- Dona Maria! Que prazer a senhora aqui! Vai almoçar conosco?
Um pouco relutante, dona Maria responde:
- Não sei, dona Cida, não quero atrapalhar...
Já fazendo sua comadre entrar, Cida diz:
- De forma alguma. A senhora nunca atrapalha. Sabe que sua companhia é sempre bem-vinda. E além do mais, eu insisto, almoce conosco.
- Bem, já que insiste... – Dona Maria entra.

Germano já estava sentado á mesa, esperando Cida chegar com a comida. Enfiava freneticamente o dedo no nariz fazendo a limpeza, cavoucava até quase a base em busca de mais resquícios de sujeira. Quando vê dona Maria, que já vai sentando, tira o dedo e a cumprimenta:

- Dona Maria, como vai? – Parece sóbrio. Enrola a sujeira de seu nariz e a deixa cair.
Acomodando-se melhor na cadeira, ela diz de maneira simpática:
- Vou bem, seu Germano. E parece que o senhor está muito bem hoje também.
Antes que ele possa responder, Cida chega trazendo uma enorme panela com feijoada. Coloca-a sobre a mesa e responde por ele:
- Ele parou de beber, dona Maria... Não é maravilhoso?
Dona Maria olha enviesado para o rosto de Germano, que já começa a se servir e diz, disfarçando um mal estar que sentiu:
- Sim, dona Cida... É maravilhoso...
Cida coloca feijoada no prato de dona Maria, que pede:
- Por favor, dona Cida, não exagere, eu estou com uma dor no estômago que está me matando...
Mostrando o prato razoavelmente cheio, ela pergunta:
- Está bom assim ou quer mais, dona Maria?

Observando aqueles pedaços amarelados de gordura flutuando no molho, dona Maria começa a elucubrar imagens em sua mente, imagina: “Que bom seria ter um enfarte aqui na mesa da Cida... Cair de cara no prato de feijoada... Espalhar a comida pelo chão todo...”.

Ela diz:
- Sim, sim... Está ótimo.
Os três iriam começar a comer quando dona Maria sugere:
- Esperem, temos que fazer uma oração...
Dona Cida concorda:
- Tem razão!

Eles dão-se as mãos e dona Maria começa a rezar, empolga-se, depois de um “Pai Nosso” emenda com uma “Ave Maria”, depois inicia um “Creio em Deus Pai” e quando está prestes a iniciar outra, Germano interrompe:

- Eu preciso trabalhar... Dona Maria... Se não se incomoda eu gostaria de almoçar...
Dona Maria fica um pouco enrubescida e se desculpa:
- Oh! Sim... Sinto muito... Podemos comer...
Durante a refeição, dona Maria se lembra do que teria de contar para dona Cida:
- Pois a senhora não imagina o que aconteceu ontem...
- Me diga, dona Maria... – responde ela curiosa.
- A Conceição... Usou o santo nome de Deus em vão... Falou que Deus não existe. Veja só... Falou também que jamais entraria numa igreja novamente... O padre disse que ela estava possuída pelo demônio...

Sem parar de comer, Cida espanta-se:
- Que horror! A que ponto nós chegamos...
Cuspindo pedaços de carne por falar enquanto come, dona Maria continua:
- Pois é... – dá uma garfada – Ontem ficamos a noite inteira rezando uma novena prá ela... Mas não acho que tenha adiantado. – Pausa para mastigar, em seguida dona Maria continua – O diabo está cada vez mais forte...

Germano assiste aquilo sem prestar muita atenção, comia compulsivamente, parecia querer se esconder atrás do prato de feijoada. Depois que termina, levanta-se despedindo de dona Maria e saindo em disparada. As duas permanecem ali na mesa, terminando de comer.

Dona Cida faz um comentário:
- Pobre Germano... Tem trabalhado tanto esses dias...
Dona Maria fala num tom malicioso:
- Trabalhado?
Cida dá mais uma garfada e confirma:
- Sim... Ele disse que os fornecedores não entregam mais as mercadorias. Tem que ir até Monte Alto prá pegar as entregas todo dia a tarde. Veja se isso é vida!
Dona Maria planta sua semente:
- Você não acha estranho?
- Estranho o que? – Pergunta dona Cida.
- Estranho o fato dele ter parado de beber de uma hora prá outra... E ainda sair da cidade e ir toda tarde até Monte Alto...
Dona Cida fica intrigada:
- A senhora acha, dona Maria?
Foi enfática:
- Mas é claro... A senhora não percebe, comadre?
- Perceber o que? – Pergunta dona Cida, meio temerosa da resposta.
- Com certeza ele deve ter arrumado outra mulher lá. Homem é tudo igual.
Para de comer imediatamente:
- Meu Deus! Mas... O Germano nunca seria capaz de fazer isso comigo... Ele me ama...
Com uma naturalidade impecável, dona Maria conclui:
- Que nada... Isso acontece... Todos dizem isso! Mas não é o fim do mundo não, dona Cida... Vou te confessar uma coisa...
- Diga...
Dona Maria começa a relatar os fatos:
- O meu Olegário... Todos achavam que ele era um marido fiel, eu acreditava em tudo que ele dizia...
A comadre espanta-se:
- E não era?
Quase que ironicamente, dona Maria responde:
- Claro que não! Homem nenhum é, dona Cida. Homem nenhum! Ele começou a ficar estranho de uma hora para outra... parecia distante... O Júnior tinha acabado de nascer, era um bebezinho de colo, veja a senhora...
Larga o garfo e continua a narrar:
- O Olegário começou a sair a noite com frequência, dizia que ia beber com os amigos... Beber com os amigos? Conversa fiada! Ele ia se encontrar com uma vagabunda que tinha acabado de se mudar prá cidade, acho que era desquitada. Morava com a mãe louca, eu lembro muito bem... A velha ficava o dia inteiro balançando prá frente e prá trás... E os dois na sala fazendo safadeza.

Dona Cida tenta falar, mas é interrompida, dona Maria prossegue:
- Ela era uma interesseira, só queria o dinheiro do Olegário. E o bobo acreditava nela... Vagabunda! Estava tirando meu marido de casa, eu amamentando meu filho e ele fora de casa fornicando com aquela meretriz!
A comadre pergunta:
- Mas como a senhora ficou sabendo?
Irônica, responde:
- Como fiquei sabendo? A senhora se esquece das pessoas dessa cidade que vivem futricando sobre a vida dos outros? Logo o fato chegou até o meu ouvido, mas sabe o que eu fiz? Sabe?
- O que? – Pergunta Cida.
- Nada! Aguentei aquilo por muito tempo, sabia que uma hora isso iria terminar.
- E terminou? – Questiona a comadre com uma curiosidade natural.
- Terminou! O dinheiro acabou, ela sugou tudo e finalmente largou o Olegário. Depois disso ela mudou-se, não sei para que cidade, mas foi prá outro estado...
Olha para o teto, e com uma satisfação imensa, dona Maria conclui:
- Fiquei sabendo que, anos depois, ela morreu de sífilis... O Olegário ficou inconsolável... Mas eu fiz vistas grossas e continuamos nosso casamento. Quer saber a moral da história? No fim eu venci. Eu fiquei com ele.

Chocada com aquela revelação que dona Maria acabara de fazer, dona Cida permanece atônita, sem ter ao menos palavras para dizer. Dona Maria então conclui a conversa:
- Pois bem, dona Cida, te contei tudo isso prá senhora perceber que não é o fim do mundo. Isso é perfeitamente normal, minha comadre. Bem... Acho que vou andando...

Levanta-se e dona Cida a leva até a porta, despede-se cordialmente, mas Cida não consegue falar muito, está com seus pensamentos divagando. Imagina Germano nos braços de uma prostituta. Imagina a vagabunda sugando todo o dinheiro que, com o próprio suor do esforço de anos, foi conseguido. Não se conforma com isso. Passa a tarde inteira deitada no sofá chorando. Para dona Cida, o mundo caiu sobre suas costas.

CONTINUA...

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