Advertência: História forte, gráfica e perturbadora, leia por sua conta em risco.
Leia a parte 8, aqui.
Parte 9
Em sua casa, assiste ao capítulo da novela, não pode perder nenhum momento da trama que se desenrola por mais de seis meses. Senta-se confortavelmente em sua poltrona e deleita-se com o festival de intrigas e traições que se desenrolam no folhetim das oito. Às vezes, diante de uma cena de sexo mais picante, não consegue segurar o comentário, que profere em voz alta: “Pouca vergonha!”.
Mas mantinha os olhos fixos, vidrada naquela tela, jamais perdera um só capítulo. A trama estava ficando cada vez mais emocionante e ela não poderia deixar de acompanhar. Após a novela passaria um filme americano, daqueles violentos, dona Maria desliga o televisor e vai dormir, já está ficando tarde e amanhã ela terá muito o que fazer.
A noite não foi nada boa, ela teve um sonho estranho. Se viu andando num enorme corredor escuro que se estreitava cada vez mais, até que chegava num ponto em que um enorme muro despencava do teto e fechava sua passagem, o fim da linha. Antigamente, quando ainda era garota, ela tinha frequentemente este sonho, porém, via em sua frente apenas a imensidão daquele corredor, que ia se alargando e se iluminando cada vez mais. Este sonho que tivera á noite, mexeu profundamente com dona Maria, achava que isso poderia ser um sinal de que tudo estava chegando ao fim.
Acordou suando, raramente transpirava, mas aquele sonho estranho mexeu profundamente com seu espírito. As expectativas de sua vida estavam se diluindo com o tempo, a medida em que envelhecia sentia que jamais fora realmente feliz, jamais em toda sua miserável vida sentiu o gosto da felicidade completa.
Aquele sonho permaneceu em sua mente durante aquele dia todo, uma estranha sensação pairava sobre sua cabeça. Não ficou em casa, precisava jogar conversa fora, aquilo havia a transtornado de tal maneira que, se ela ficasse ali sozinha, seria capaz de enlouquecer. Queria esquecer de alguma maneira este sentimento. Precisava espairecer a mente para poder abandonar aquela estranha angústia que a permeava.
Logo quando o galo cantou, dona Maria saiu e foi até a casa de Conceição, que guardava luto, queria fazer-lhe uma visita. Bate palmas diante do portãozinho e aguarda alguns segundos, como ela não respondeu, ela insiste, desta vez a chamando.
Pouco depois a sofrida Conceição abre a porta da casa, dona Maria nota em seu semblante uma profunda dor, um profundo horror, aquilo a faz sentir-se melhor, faz com que esquecesse aquele sentimento estranho que tivera ao acordar. Foi cortez, mas não muito efusiva:
- Bom dia, dona Conceição. Vim fazer uma visitinha...
Conceição trajava um vestido negro, cabelos cobertos por um lenço e seus olhos vermelhos não podiam esconder o choro frequente. Com um fio de voz ela diz:
- Entre, dona Maria...
Pedindo licença, a velha senhora já vai adentrando a casa, sente uma atmosfera pesada, exatamente como ela gosta. As janelas estão fechadas, impedindo a entrada da luz naquele ambiente tétrico. Uma centelha de luz passa por um buraco na cortina, fazendo com que a poeira que voava por aquela sala se iluminasse, bailando no ar. Os móveis estavam todos cobertos com uma espessa camada de pó, parecia que eles não viam um pano a mais de um ano.
Um pequeno altar grudado na parede mostrava uma foto de Ivete, ainda saudável, algumas velas acesas mostravam a afeição que aquela mãe tinha com sua filha querida. Dona Maria ainda repara no chão, parece engordurado, escorregadio. Ela apoia-se na parede para não escorregar. Conceição, sem dizer nada, faz um sinal para que ela sente-se.
O sofá parecia rasgado, puído, mas parecia por falta de cuidado. Dona Maria olha aquele sofá manchado quando um súbito sentimento de nojo invade sua cabeça. Tenta disfarçar e se senta quase na ponta daquele enorme sofá. Ajeita a saia que teimava em subir na altura dos joelhos e fala:
- Como a senhora está, dona Conceição? Fiquei preocupada...
Conceição se senta também, quase que largando seu corpo no sofá e responde, quase que mecanicamente:
- Vou bem, dona Maria...
Tentando puxar assunto, a velha Maria diz:
- Sentimos sua falta na igreja... A senhora nunca faltou em uma missa...
Segurando o choro, Conceição responde:
- Nunca faltei... Nunca faltei e o que aconteceu com minha filha? O que? – Começa a alterar o tom de voz, fica mais enfática – Ela morreu! Morreu e Deus não a ajudou! É justo isso, dona Maria? Eu pergunto prá senhora... É justo?
Dona Maria se espanta com aquela reação, tenta contornar a situação:
- Dona Conceição... Eu... A senhora sabe... Deus sabe o que está fazendo... Ele... Ivete está melhor ao lado de Deus...
As lágrimas começam a brotar da face de Conceição, ela berra:
- Ivete era minha única filha. Ela era tudo prá mim, dona Maria! Deus não podia ter sido tão injusto. Não podia!
Dona Maria se levanta irritada:
- Não critique Deus! Ele sabe o que faz! Eu não posso admitir...
Conceição interrompe a frase de dona Maria:
- Eu é que não posso admitir isso! Deus não existe, dona Maria, não existe! Está ouvindo? Ele não pôde fazer nada por minha filhinha. Ele não existe!
Indignada, dona Maria pega sua bolsa e sai correndo em direção á porta:
- Nunca ouvi tanta heresia! Nunca! Em toda minha vida jamais pensei que fosse ouvir isso! Ainda mais da senhora, que eu prezava como um exemplo!
Conceição se levanta, ainda chorando e esbravejando:
- Pois é verdade! Todos nós vivemos uma vida de mentira! Todos nós! Pois fique sabendo, dona Maria! De hoje em diante jamais pisarei novamente numa igreja! Jamais! Deus é uma mentira! A igreja é uma mentira!
Abrindo a porta para sair, dona Maria brada:
- Não vou ficar nessa casa nem mais um minuto! Você ainda vai se arrepender de tudo que disse, Conceição! Vai se arrepender dessa falta de respeito á Deus! Vai se arrepender!
Bate a porta enquanto Conceição ainda grita do lado de dentro: “Mentira! Deus é uma mentira!”. Dona Maria corre indignada em direção á igreja.
CONTINUA...
18 de fevereiro de 2010
NO LIMIAR DA ANTROPOFAGIA - Parte 9 - Conto - Dimitri Kozma
Seções: Contos, Dimitri Kozma, horror, No Limiar da Antropofagia, textos
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