Advertência: História forte, gráfica e perturbadora, leia por sua conta em risco.
Leia a parte 5, aqui.
Parte 6
No dia seguinte, logo cedo, lá está ela, dona Maria, sentada em um banco da praça, a espera de alguma notícia que a possa animar. Está um pouco ansiosa, mesmo assim tenta se acalmar alimentando os pombos com cascas de pão velho. Um pequeno caminhão passa por lá afugentando as aves que timidamente se aproximaram de dona Maria em busca de algum farelo.
Ela então se irrita e larga o saco pardo com as migalhas de lado e levanta-se, quando vê chegando da outra rua, cruzando a esquina, Zuleica, a solteirona. Parecia eufórica, dona Maria a chamou de longe gritando seu nome, ela prontamente atendeu.
- Dona Maria! A senhora não sabe da última! – Disse Zuleica, arfando sem parar.
- Pois me diga, Zuleica.
A solteirona olha para os lados e abaixa a voz para dizer:
- A Laurinha, fia do seu Bernardo... Ficou sabendo?
Dona Maria já pressentia o que viria, mas fala assim mesmo:
- Não! Pois me conte.
- A Laurinha... Bem, eu estava passando em frente a quitanda do seu Demerval e ouvi a dona Gertrudes falando que a Laurinha levou uma surra de corrente do pai...
Radiante por dentro, dona Maria faz um olhar de misericórdia:
- Oh! Meu Deus! Pobrezinha... Mas... O que aconteceu?
- Ninguém sabe... Só sei que ela foi parar no Pronto-Socorro, a cara dela parecia um pão, de tão inchada... A Gertrudes me garantiu que anteontem viu ela saindo com dois rapazes e foram lá prá Monte Alto, mas não sei...
A velha senhora fica horrorizada:
- Ora! A Gertrudes é uma fofoqueira! Onde já se viu? Ela só sabe falar da vida dos outros... – Para por um instante e continua – Mas eu ouvi dizer que a Laurinha foi vista cometendo o pecado carnal. Uma despudorada!
Zuleica continua a ouvir o que a sábia dona Maria tinha a dizer:
- Pessoas como ela desonram o nome de nossa cidade, sujam nossa moral cristã. – Continua a esbravejar, com dedo em riste – Ela é suja, assim como o pai, que coloca revistas indecorosas para os clientes lerem. Você já passou por lá e viu cada revista imoral que ele deixa ali? E se uma criança passa por lá e vê aquilo?
Com um olhar surpreendido, Zuleica agarra mais forte a sua bíblia e esbraveja:
- É por isso que eu só leio o que está escrito aqui. – Levanta o livro santo e o sacode – Só Deus pode nos livrar da maldade do Diabo, só Ele pode curar os nossos males. Nunca imaginei que o seu Bernardo fosse capaz de uma barbaridade dessas, mas se a senhora viu...
- Pois eu não vi com meus próprios olhos que a terra há de comer? – Enfatiza dona Maria
- Aquele homem é um sujo. Depois que a inocente esposa dele faleceu... Se lembra, dona Maria?
Saudosista, a velha dona Maria recorda-se:
- Ah! Como me lembro... Ela estava tão linda deitada naquele caixão de madeira-de-lei. A roupa ficou perfeita, nem parecia que ela tinha sofrido tanto antes de morrer, não foi? Me lembro até hoje do tule que eu usei para forrar o caixão, lindíssimo. Era importando, sabia? O seu Bernardo trouxe da Argentina.
Zuleica, com os braços cruzados e um olhar terno, diz:
- Sim... Eu me lembro como se fosse hoje. Eu me lembro ainda das crianças do seu Bernardo... Eram todas pequenas, nem entendiam direito o que estava acontecendo...
Dona Maria fala com voz afiada:
- Pobres crianças... E agora estão perdidas na vida... Acho que o filho maior mudou-se para a capital e está fumando drogas... Me falaram que está só pele e osso... A outra filha dele eu acho que se casou com um homem de cor... Imagine só o desgosto do seu Bernardo... A última esperança dele era a pequena Laurinha... Mas eu acho que ela tá desgraçada também...
- A senhora tem razão... É muita desgraça para um pai só, mas...
- Não que eu ache que ela merecia isso que aconteceu... – dona Maria interrompe – Mas você sabe... Deus escreve certo por linhas tortas, onde já se viu uma pouca vergonha dessas? É por isso que eu prezo e respeito você, Zuleica, mesmo sendo ainda jovem tem uma vida exemplar. Uma conduta perfeita.
Zuleica se diverte:
- Jovem? Dona Maria, tenho quase quarenta anos...
- E não é nova? Minha filha, eu tenho quase o dobro da sua idade! Você ainda terá muito que oferecer para nossa comunidade cristã. – E completa - Nunca se case, viu? Homem só desgraça a vida da gente.
- Deus me livre se casar, dona Maria – Zuleica faz o sinal da cruz e continua a falar – Eu nunca vou deixar homem nenhum se aproveitar de mim.
Encostando no braço da solteirona, dona Maria a louva:
- Pois faz muito bem, faz muito bem.
Despedem-se, dona Maria afasta-se, ainda com Zuleica permeando em sua mente, ela pensa: “Isso mesmo, nunca se case! Nunca tenha ninguém para compartilhar a vida com você. Se eu não tenho, porque você precisa ter?”.
Na verdade, Zuleica nunca se casara por absoluta falta de sorte, quando pequena, seu pai havia lhe prometido para um rico fazendeiro, mas ele faleceu antes mesmo de Zuleica completar os dez anos, desde então, sua vida amorosa foi quase que anulada por seu pai severo Sua mãe, uma ardorosa carola, a levava à missa todos os dias, e a partir daí, substituiu a necessidade de um companheiro pela igreja e por trabalhos comunitários. Já pensara em se tornar freira, mas dona Maria a desaconselhara.
O tempo passou, Zuleica descuidou-se de sua aparência e agora vive uma vida semelhante a que dona Maria levava em sua velhice, prestando serviços á comunidade e abnegando-se totalmente dos prazeres carnais.
Dona Maria chega a porta do minúsculo Pronto-Socorro da cidade, funcionava junto ao hospital, geralmente ficava vazio, poucos eram os acidentes naquela pacata região.
Naquele dia, não havia ninguém na sala de espera, que era na verdade dois banquinhos enfileirados. No balcão, dona Maria, já velha conhecida, cumprimenta a atendente:
- Olá Zefa, como vai? Hoje está bem parado, né?
Zefa, uma mulher magra, cabelos tingidos de loiro e um sotaque caipira incontestável responde cordialmente:
- Olá, dona Maria. É... Hoje a gente não tivemos muito trabalho... Só tem uma paciente internada aqui prá modi observação.
Interessada, fingindo não saber, dona Maria pergunta:
- Ah é? E quem é?
- Óia, dona Maria, não conta prá ninguém, viu... – Zefa abaixa a voz – É a Laurinha, fia do seu Bernardo barbeiro.
- Não me diga? Mas... – Dona Maria também abaixa a voz – Porque ela está aqui?
Se aproximando mais o rosto para que não fossem ouvidos, Zefa responde:
- Acho que o pai desceu a cinta nela... Ela deve di ter feito coisa muito errada prá apanhar desse jeito... A menina tá toda estropiada.
Com um olhar obsequioso, quase chorando, dona Maria diz:
- Meu Deus! Não me diga uma coisa dessas, Zefa... Escuta... Posso entrar lá prá ver como ela está? Só prá eu ficar mais calma, eu morro de preocupação com essa menina, eu a prezo muito, como a uma filha... E então, posso entrar?
Zefa olha para os lados, verificando se não havia ninguém por lá, e diz:
- Eu sei que a senhora só passa energia positiva, dona Maria, pode ir sim, mas não conte prá ninguém que eu deixei a senhora entrar, senão eu vou perder o emprego... Ela não vai poder falar, tá dormindo com um monte de sedativos.
- Entendo... Obrigada Zefa, Deus lhe pague.
Rapidamente dona Maria vai até o quarto em que Laurinha se encontra. Seus olhos ficam crepitantes, para aquela velha senhora é um bálsamo poder observar seu triunfo. Na cama está inerte aquela lindíssima moça, o corpo todo arroxeado, repleto de hematomas. Bandanas em seu rosto impedem dona Maria de apreciar as feridas que a cinta de ferro causou naquela pele alva. Mas percebe claramente o inchaço, que está mais do que evidente.
Por alguns momentos contempla aquela pessoa quase indefesa em sua frente, lembra-se dela no mato, rolando com aquele rapaz atlético, os cabelos esvoaçando com o vento. Sente um ódio quase que irracional. Imagina como seria bom maquiar seu corpo assim que estiver morta, acariciar suas veias entupidas, esmagar seus olhos.
Mas a razão volta à tona, dona Maria percebe que já ficou ali bastante tempo e resolve se retirar, afinal poderia prejudicar Zefa, e nunca mais conseguiria entrar ali naqueles quartos para ver os pacientes.
Saindo do Pronto-Socorro agradece Zefa imensamente e volta para casa, já está na hora do almoço, mas ela não tem muita fome, afinal havia acabado de se alimentar, um pouco, é bem verdade, apenas um lanche.
Ver Laurinha ali a deixou nutrida o suficiente para aguentar mais um período, mas acha melhor comer algo realmente para que a tarde possa ser proveitosa. Em sua casa faz um pouco de arroz com um ovo frito, come aquilo mais por obrigação, pois já sente sua alma alimentada. Suas pernas doem um pouco, resolve deitar-se.
Depois de um rápido cochilo, vai até a janela olhar o movimento. De lá pode observar um certo alvoroço, pessoas correm de um lado para o outro. Aquilo lhe parece muito estranho, rapidamente coloca um casaco e sai a rua para averiguar.
Passa por ela dona Carmem, ela parece meio atordoada. Dona Maria a interpela:
- Dona Carmem... O que foi que houve?
Um pouco abatida, ela responde:
- Dona Maria, imagine só... Parece que mataram o Fábio, aquele rapaz, novo na cidade, que estava trabalhando na fazenda “Sete Esporas” como técnico em agronomia...
Dona Maria leva um choque:
- Não me diga uma coisa dessas!
Carmem continua a narrativa:
- Pois é... Parece que foi o seu Bernardo que atirou nele... Andaram espalhando por aí que o Fábio tava saindo com a filha dele... Levou um tiro na cabeça.
Num misto de emoção e satisfação, dona Maria continua a sondar:
- Coitado! Tão jovem... Mas me diga, dona Carmem, e o seu Bernardo?
- Ninguém sabe, atirou e sumiu... O corpo tá lá no bar do seu Jurandir... Acho que ele tinha ido fazer compras e o Bernardo tava esperando ele lá... Não deu outra...
Maria interrompe:
- Ah! Então o corpo está no bar? Eu vou até lá dar uma olh... – Se corrige - Bem... Vou rezar pela alma desse pobre moço... Com licença, dona Carmem.
CONTINUA...
18 de janeiro de 2010
NO LIMIAR DA ANTROPOFAGIA - Parte 6 - Conto - Dimitri Kozma
Seções: Contos, Dimitri Kozma, horror, No Limiar da Antropofagia, textos
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