3 de janeiro de 2010

NO LIMIAR DA ANTROPOFAGIA - Parte 4 - Conto - Dimitri Kozma

Advertência: História forte, gráfica e perturbadora, leia por sua conta em risco.
Leia a parte 3, aqui.

Parte 4

Naquela noite, depois de chegar em casa dona Maria ingeriu um caldo verde que havia sobrado do dia anterior, tomou um banho rápido e dormiu como não fazia há tempos. O sono dos justos, parecia mais rejuvenescida, possuía um frescor quase adolescente, deitou a cabeça no aromatizado travesseiro de penas de ganso e imediatamente pegou no sono. Acordou na manhã seguinte com uma disposição de fazer inveja aos mais jovens.

Dias depois dona Maria faz sua ronda, como de costume, pelas ruas bucólicas de São José das Oliveiras, numa infindável busca por algo que nem ela sabe realmente o que. Caminha a passos lentos, analizando cada detalhe, cada sinal de que alguma coisa anormal possa estar acontecendo prestes a quebrar a rotina daquela cidade.

Desde muito, dona Maria caminha por aquelas ruas estreitas sem destino, apenas de olho no que os outros estão fazendo de errado, quando encontrava uma comadre, parava e ficava conversando por horas sobre qualquer assunto fútil. Naquela tarde, cruzando a rua da praça, encontrou a dona Isaura, uma negra mastodôntica, corpanzil descomunal e um hálito indesejável. Dona Maria nunca foi com a cara daquela mulher, “Deveria ser escrava, essa negra nojenta.”, passa por ela a faz um aceno, chamando-a:
- Olá, dona Isaura? Como vai a senhora?
Isaura estende a mão para cumprimenta-la, dona Maria lhe dá a mão sem encostar muito, não queria encostar nela, mas Isaura aperta ferozmente sua mão:
- Dona Maria, a quanto tempo? Eu vou bem, só um pouco doente...
Dona Maria recolhe a mão e disfarçadamente esfrega-a na saia tentando, em vão, limpá-la. Tenta ser simpática:
- Mas isso passa, dona Isaura. Isso passa. Mas o que a senhora está sentindo?
- Bom, dona Maria, eu tô com... - Olha para os lados, abaixa a voz e continua: - ...Corrimento! Fui na benzedeira e ela me mandou fazer uma lavagem.
Dona Maria se espanta:
- Benzedeira? A senhora acredita nessas besteiras, dona Isaura?
- O seu Olívio me falou que ela era das boas, curou a hérnia que ele tinha.
Ainda esfregando a mão na sai, dona Maria se enfurece:
- O Olívio é um ateu! Ele não acredita em Deus, tá ouvindo? É um herege, um filho do Demo!

Isaura arregala os olhos, coloca as mãos na boca, está passada com o sermão que estava recebendo de dona Maria, quase chorando, diz:
- Mas ele é tão bonzinho...
Com um ar iníquo, dona Maria continua a execrar Olívio:
- Bonzinho? Aquilo ali é coisa mandada, dona Isaura! E se continuar a fazer o que ele fala, vou falar pessoalmente com o padre para ele não deixar mais a senhora assistir à missa, tá ouvindo?
Quase suplicando:
- Mas... Dona Maria...
- Só existe alguém capaz de te curar, dona Isaura, é o Nosso Senhor Deus, Mais ninguém! Só ele pode te curar. Pessoas como essa benzedeira vão arder no fogo do inferno, junto com o Olívio... Quer ir junto com eles? Quer? – Pergunta dona Maria, num tom quase provocador, mas mantendo a serenidade que sempre a caracterizou.
Imediatamente Isaura responde:
- Não! Não quero...
- Pois então fique sabendo que só Deus pode te curar, só ele. Bem, dona Isaura, vou precisar ir embora, tenho ainda que fazer algumas visitas, boa tarde.
Aconteceu o que dona Maria temia, Isaura estende a mão novamente para ela, sem ter como escapar, novamente lhe dá a mão sem muita ênfase e se despede. Isaura permanece ali, em silêncio, refletindo sobre aquilo que dona Maria lhe falara.

Quando ela se afastou um pouco, um asco toma conta de seu ser. Dona Maria não consegue tirar de sua mente a imagem daquela mão escura encostando em sua pele alva, aquilo lhe dá uma aflição enorme. Começa a esfregar veementemente a mão em sua saia, chega até a ficar vermelha de tanto que friccionava. Sem conseguir tirar isso de sua cabeça, ela entra no bar do seu Jurandir e pede:
- Boa tarde, seu Jurandir, posso usar a torneira?
- ´Tarde dona Maria, disponha.
Esfrega aquelas mãos envelhecidas com uma voracidade absurda, gasta quase um terço da bisnaga de detergente que estava recostada sobre o balcão. Permanece lavando as mãos por mais de cinco minutos e finalmente termina. Olha para as mãos, estão muito enrugadas, mas extremamente limpas. Agradece seu Jurandir e sai do bar, carregando consigo um sentimento de enorme purificação.

Continua a caminhar por aquelas ruas quase desérticas do bairro da Cantareira, está longe de sua casa, poucas vezes havia se aventurado por aqueles lados, era muito longe de onde morava. Mas aquele dia passeava por ali, não se sabe porque cargas d’água resolveu entrar numa ruazinha erma, onde se via um terreno baldio ao lado esquerdo.

Estranhos ruídos vindo detrás do tapume de madeira barata que bloqueava o acesso a aquele terreno chamam a atenção de dona Maria. Parecem gemidos e sussurros, mas está um pouco abafado, não é possível distinguir perfeitamente do que se trata. Movida pela curiosidade, ela encontra uma pequena fresta naquele painel tabulado e espreita sorrateiramente.

Aquilo que vê é algo que a deixa estarrecida, ferindo profundamente seu brio. Recostados do lado oposto do tapume, ela vê a inocente Laurinha, filha caçula do seu Bernardo, dezesseis anos, lindíssima morena, cabelos lisos, pele bronzeada e lábios carnudos, num discreto, porém voluptuoso coito com o rapaz novo na cidade, aquele técnico em agronomia que estava vivendo na fazenda “Sete Esporas”.

Rapaz bem apessoado, vindo da capital, facilmente encantou Laurinha, menina simples do interior. Dona Maria viu aquela menina crescer, uma boa moça. Agora vê aquela jovem, cheia de corpo, se engalfinhando no mato espesso daquele terreno baldio com aquele moço que ela nem ao menos sabia quem era.

“Como podem estar fazendo isso?” – Pensa dona Maria enquanto espia sorrateiramente tudo pela pequena fresta – “Pouca vergonha!”. Mesmo ruborizada, ela assiste ao ato até o fim, gravando cada detalhe, cada gesto, para que mais tarde possa relatar com toda verosimilhança possível.

Percebe cada curva daqueles dois corpos jovens, consegue sentir o calor da volúpia daquele emaranhado de pele que se mescla numa turbulência de sentidos. Imagina como seria bom se ela estivesse no lugar daquela moça, se ela estivesse ali satisfazendo seus desejos mais íntimos e perversos nos braços daquele belíssimo rapaz. Numa inconstante de pensamentos, não consegue mais discernir o que faz parte de seu subconsciente e de sua razão. Pensa: “Sujos, imorais!”, ao mesmo tempo em que passa por sua cabeça a imagem dela mesma sendo penetrada. Pensa “Vocês merecem a morte!” e pensa “Como ele é grande!”. Pensa “Deus vai derramar sua maldição sobre eles! Merecem morrer!” e pensa “Como ela tem o corpo bonito, liso... Como ela geme de prazer... Eu queria ser como ela!”.

Está confusa, não quer pensar mais, não pode mais pensar porque “O demônio está tomando meu corpo!”. Fecha os olhos por um instante, continua ali, ouvindo aqueles gemidos abafados, não resiste e abre novamente, assistindo a aquilo tudo sem mais pestanejar. Apenas olha para os lados para certificar-se que não havia ninguém por perto e continua a observar os dois corpos se enovelando. Pele com pele, a respiração ofegante, a troca de fluídos corporais, o suor escorria pelos corpos ardentes. Dona Maria não arredava pé, tinha que analisar cada pormenor daquele momento. Quase colada no tapume, ela permanece ali, em devaneios com seus pensamentos dúbios.

Finalmente urros de prazer indicam que aquele momento sublime estava chegando ao fim. Dona Maria deveria sair dali, não poderia ser vista por eles. Antes que terminassem de colocar as roupas, a encarquilhada velha sai em disparada em direção á praça, está feliz, tem guardada em sua mente imagens inesquecíveis.

CONTINUA...

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