Advertência: História forte, gráfica e perturbadora, leia por sua conta em risco.
Leia a parte 2, aqui.
Parte 3
A madrugada chega e apenas permanecem na sala os parentes mais próximos e alguns amigos. É uma Quinta-feira, “Dia horrível para se morrer!”, pensa dona Maria, o velório não está tão cheio como costuma estar quando falece alguém no fim-de-semana. No último velório, o do seu Eustáquio, a sala estava lotada, era um belíssimo sábado de céu estrelado e parece que o programa naquele dia era visitar o cadáver de seu Eustáquio jazendo naquele velório. “Foi inesquecível!” pensa dona Maria enquanto vê alguns gatos pingados que estavam sentados nos banquinhos laterais. Até Conceição já parou de chorar violentamente, apenas choraminga de mansinho sentada num banco ao lado de sua prima. Dona Cida também se encontra sentada num dos banquinhos, tinha deixado o marido dormindo na cama e rapidamente já voltara para a sala do velório, mas ela está piscando forte, quase pegando no sono. Algumas pessoas estão cochilando com a cabeça pendendo para um lado, de vez em quando alguém chega até a roncar. O clima está uma morosidade aterradora, o silêncio impera absoluto, apenas interrompido de vez em quando pelo suspiro profundo de Conceição.
Finalmente dona Maria toma a iniciativa, levanta-se e grita eufórica:
- Vamos rezar! Todos dêem as mãos!
Alguns se levantam aborrecidos, outros mais condescendentes, imediatamente se forma uma corrente em torno da mesa de mármore que sustenta o ataúde de Ivete. Dona Maria inicia as preces, como sempre fizera ao longo desses anos todos. Os outros a seguem, repetindo suas palavras de louvor a Deus e a Jesus Cristo. Enquanto todos oravam, dona Maria reparava em cada detalhe daquele cadáver, este era o momento em que ela sempre utilizava para isso, sua fértil imaginação viajava em delírios inenarráveis. Reparava na feição de cada uma das pessoas que estavam ali e percebia o sofrimento dos parentes mais próximos. Se alimentava disso, um alimento para sua alma sofrida, que encontrava conforto em sua miserável vida apenas nestes curtos momentos, que ela tanto almejava.
Não é possível precisar por quanto tempo rezaram, quando dona Maria foi perceber, lá fora o céu já estava clareando, os passarinhos já começavam a cantar e mais algumas pessoas chegavam para dar os sentimentos à Conceição.
Dona Carmem aparece ali com uns biscoitinhos caseiros, ela sempre foi uma quituteira de mão cheia, bate no ombro de dona Maria e oferece:
- A senhora aceita, acabei de assar, são de goiaba.
Dona Maria rejeita educadamente a oferta, afinal já estava bem alimentada por hoje, além disso era diabética, nunca tomava insulina, mas se cuidava, evitando comer doces:
- Obrigado, dona Carmem, mas eu não estou com fome... Velórios me fazem perder o apetite, é tão triste...
Carmem, que era uma mulher gorda, diz enquanto não parava de comer os próprios biscoitinhos:
- É por isso que a senhora está tão magra assim, dona Maria, precisa se alimentar melhor...
- A senhora se esquece que eu não posso comer doces... Sou diabética. – Lembra dona Maria.
- Oh sim! Desculpe... Eu me esqueci, dona Maria... E como está o seu nível de açúcar no sangue? – Pergunta Carmem, não muito interessada.
- Faz uns dois anos que eu medi pela última vez... É só controlar, sabe... Não comer doce...
A bonachona Carmem faz um gracejo:
- Ora, se eu ficar sem comer doce, eu acho que morro! – Solta uma risada silenciosa, apenas pelo nariz.
“Você vai explodir de tanto comer, sua gorda nojenta!” – Pensa dona Maria, mas nada diz. Sem esperar a resposta, dona Carmen vai oferecer para outra pessoa os seus deliciosos biscoitos, dona Maria permanece ali, a espera do enterro, que vai acontecer por volta das onze horas.
O padre Onofre entra pela porta, um velho baixo, calvo, olhos pequenos e nariz pontiagudo. Anda apoiado por uma bengala. Uma aparência ameaçadora, tinha um olhar superior com a mania de ver as pessoas do alto, como se fosse uma entidade, ele mesmo se julgava uma entidade espiritual de luz a serviço do Senhor. Tinha idéias conservadoras ao extremo, por isso admirava pessoas como dona Maria, que prestavam um serviço incomensurável para a igreja e para a comunidade. Era muito antigo na cidade, chegava a ser mais poderoso que o prefeito, nas últimas eleições, por exemplo, o padre Onofre indicou seu candidato, um decrépito coronel de direita, resultado: Uma vitória esmagadora.
Cumprimenta primeiramente dona Maria, que era quase que uma unanimidade naquela cidadezinha, ela em sinal de respeito, o beija a mão.
- Benção, padre...
Com um olhar elevado, o pároco responde:
- Deus te abençoe, minha filha.
Em seguida caminha até próximo a mesa, estende a mão para Conceição, que a agarra forte e beija demoradamente, depois observa o corpo, que já estava mais inchado e arroxeado, faz o sinal da cruz e reza um “Pai Nosso” e uma “Ave Maria”, em seguida faz uma reverência a todos e sai, dizendo voltar depois para o enterro.
Dona Maria volta para junto de Conceição, que agora chorava violentamente de novo, observa o corpo, percebe cada detalhe que se formou de ontem para hoje, percebe cada vaso que estourou, cada veia que está mais escura, repara no inchaço que aconteceu rapidamente, de uma hora para outra, faz força e consegue ver os algodões, tingidos de vermelho, pensa: “Se eu não tivesse colocado esses algodões...”. Não resiste e toca mais uma vez na mão de Ivete, ela está gélida, ressecada. Consegue perceber claramente os músculos que, a esta altura, já estão duros como pedra.
O tempo passa e finalmente o relógio pendurado na parede do fundo marca onze horas. Um jovem, funcionário do velório coloca lentamente a tampa no esquife, quando Conceição percebe que vem chegando o momento do adeus definitivo, começa a soluçar como uma histérica e se joga abraçando o corpo da filha. Dona Maria vê aquilo tudo com o maior prazer possível. Conceição grita: “Não! Minha filhinha! Não! Não vai! Não!” enquanto se debruça naquele caixão agarrando aquele defunto pútrido. O pedaço do pano rendado que estava no tórax de Ivete caiu, deixando à mostra as cicatrizes da mastectomia. Mas Conceição parecia não ligar para aquilo, parecia que queria apenas ficar agarrada com sua filhinha querida que a deixara, estava tão transtornada que teve de ser retirada a força para que o caixão pudesse ser fechado.
Alguns esparsos parentes seguraram nas alças de ferro do caixão, mas dois funcionários tiveram que ajudar pois não haviam parentes nem amigos homens suficientes para carregar, alguns velhinhos estavam tão encarquilhados que não poderiam nem pensar em carregar aquele ataúde. Dona Maria pensa: “Porque fui nascer mulher? Eu poderia estar carregando esse caixão.”, o padre Onofre chega um pouco atrasado, mas ainda há tempo de liderar o cortejo que se segue do velório até o cemitério.
Lentamente aquela procissão vai passando pelas ruas, rezando incessantemente, Conceição teve que ser aparada, pois estava passando mal, com uma forte tontura que não a deixava ficar de pé. Dona Maria seguia na frente, ao lado do padre, segurava seu indefectível terço com toda força possível. O dia de trabalho não permitia que muitos seguissem o cortejo, mas era um número significativo, aproximadamente cem pessoas.
Depois de alguns quarteirões, chegam ao cemitério, lindo, repleto de árvores, com enormes estátuas de anjos enfeitando as sepulturas e maravilhosos mausoléus ricamente decorados. Dona Maria visitava com frequência o túmulo em que se encontravam seu filho e seu marido Olegário, conhecia aquele campo-santo de cor. Ás vezes quando não tinha nenhum afazer nas tardes quentes de verão, passeava pelos jazigos trocando as flores que estavam secas por flores frescas. Gostava de fazer isso principalmente com túmulos de pessoas esquecidas pela família, se sentia feliz com este ato de solidariedade.
O cortejo fúnebre atravessa as avenidas principais do enorme cemitério, grande demais para uma cidade tão pequena, pensam alguns. Um gato amarelado cruza a procissão que vai se embrenhando cada vez mais profundamente no adro arborizado. Um silêncio sepulcral ainda permeia, apenas quebrado pelos choros desesperados de Conceição, que via cada vez mais próximo o adeus definitivo.
Finalmente encontram o sepulcro destinado a Ivete, não era algo muito grandioso devido a alguns problemas financeiros que Conceição enfrentara, mas era digno de respeito, uma lápide com seu nome gravado em letras em relevo davam um ar um pouco menos rústico a aquele enterro. Com duas cordas amarradas nas extremidades, três coveiros começam a fazer o caixão descer na cova, neste momento Conceição começa a se debater histérica, rasgando a roupa e tendo de ser impedida de se jogar dentro da cova ela berra:
- Minha filha! Minha filha! Eu preferia ir no seu lugar! Minha filha, volta! A mãe vai no seu lugar!
Aquilo comoveu a todos, aquele gesto de amor e entrega mexeu com o brio da maioria das pessoas que acompanhavam o cortejo, dona Cida olha com profundo enternecimento e comenta baixinho com dona Maria que estava ao seu lado:
- É nessas horas que vemos como as mães sofrem... Olha só, comadre... Olha como é triste esse momento...
- É realmente muito triste, ela nunca mais vai ver a filha, nunca... Mas Deus sabe o que faz, se Ele quis assim, então isso devia ser o melhor prá ela. – Conclui dona Maria, sem tirar os olhos de Conceição.
O caixão finalmente toca o solo de sua vala definitiva, imediatamente, depois de tirar as cordas, o padre diz algumas palavras de conforto, seguido de uma reza. Momentos depois a terra já está cobrindo o esquife, dona Maria joga um botão de rosa antes que o caixão desapareça totalmente mancomunando-se com o solo. As lágrimas de Conceição são infindáveis, amparada por um primo, ela é levada, pouco depois os outros também começam a sair enquanto os coveiros começam a cimentar aquela laje que cobrirá a cova que foi fechada. Dona Maria é a única que ainda permanece ali, vendo o trabalho fascinante dos coveiros.
Depois que eles terminam, ela ainda continua lá, irredutível, vendo aquele recém-chegado corpo. Imagina a ação dos vermes, imagina a pele sendo corroída pelas minúsculas larvas que vivem na escuridão. Divaga pensando naquele corpo embaixo da terra, os olhos cerrados para sempre, aquela posição por toda a eternidade.
Chama um garotinho que vendia flores e compra um buquê, um dos mais bonitos e vistosos. Lírios do campo, flores essas que transmitem a ela um sentimento tão profundo que nem ao menos consegue explicar, um misto de alegria e de uma profunda melancolia. Depois de admirar por alguns segundos aquele belíssimo buquê, dona Maria o coloca sobre o túmulo, encima da laje ainda umedecida, e permanece ali sozinha durante todo o dia, até escurecer.
CONTINUA...
18 de dezembro de 2009
NO LIMIAR DA ANTROPOFAGIA - Parte 3 - Conto - Dimitri Kozma
Seções: Contos, Dimitri Kozma, horror, No Limiar da Antropofagia, textos
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