Começo a publicar agora a versão romanceada de meu conto NO LIMIAR DA ANTROPOFAGIA.
Na provinciana cidade de São José das Oliveiras, os moradores vivem suas vidas vazias, preenchidas com culpa e angústia oferecida pela religião e pela preocupação com a vida alheia. Neste recanto de paz e serenidade vive dona Maria, conhecida pelo povo como sendo um exemplo de altruísmo e solidariedade, uma senhora admirada por todos. Ela guarda consigo um terrível segredo.
É uma história forte, gráfica e em alguns momentos perturbadora, leia por sua conta em risco. O texto já foi registrado na Biblioteca Nacional, mas não foi feita ainda a revisão ortográfica, então, por favor, ignorem os eventuais erros no texto e mergulhem neste universo, disponível com exclusividade aqui no Sopa de Cérebro.
NO LIMIAR DA ANTROPOFAGIA
por Dimitri Kozma
Parte 1
Na pequena cidade provinciana de São José das Oliveiras o povo vive a rotina pacata do interior. Em sua grande maioria formada por lavradores, a população de pouco mais de cinco mil habitantes era basicamente constituída de idosos broncos, sem estudo, uma vez que os mais jovens iam tentar a vida na cidade grande. Poucos eram os jovens que ainda permaneciam nesta cidade, sem perspectivas de futuro, os pais faziam um esforço enorme para que eles estudassem na capital, apenas os filhos dos comerciantes ainda persistiam em viver ali, pois herdariam os negócios da família.
Neste recanto de paz e serenidade vive dona Maria, conhecida pelo povo como sendo um exemplo de altruísmo e solidariedade, uma senhora admirada por todos, sempre pré-disposta a ajudar o necessitado, mais de setenta anos nas costas, cabelos grisalhos, olhar profundo, meigo, terno, pele ressecada pela idade e pelo excesso de exposição ao sol, nariz proeminente, uma eterna feição de compaixão pelo seu semelhante. Viúva, nunca casara-se novamente, dedicava fidelidade absoluta para seu eterno amor, Olegário, que a deixara a mais de quarenta anos, após ter sido consumido aos poucos pelo câncer. Depois de tantas intempéries era de se admirar que ela ainda mantivesse forças para viver pela comunidade. Dona Maria era o anjo daquela cidadezinha.
A praça de São José das Oliveiras era bonita, arborizada, podia-se ver uma pequena fonte ao centro, os passarinhos cantavam por toda parte, numa infindável sinfonia. Na calçada, um pipoqueiro assobia chamando a atenção das crianças que jogavam bola na rua, dona Maria está passando, como sempre atarefada, carrega uma sacola com laranjas maduras. O corpo velho já não tem tanta força assim, mas não se sabe onde, dona Maria arranja uma energia interior que dá uma disposição inimaginável para uma pessoa daquela idade. Está ela passando por um monumento erguido em homenagem ao último prefeito da cidade, que construiu aquela estátua de si mesmo com o dinheiro da prefeitura, quando vê do outro lado da rua a sua velha amiga de anos, dona Cida, uma velha gorda, que sempre andava com um lenço amarrado na cabeça, pequenos óculos redondos que eram desproporcionais ao rosto, inchado pela gordura, uma pinta na boca com alguns tufos de pelos davam um ar meio abjeto a aquela senhora, que era uma das melhores costureiras da cidade, esposa do velho Germano, conhecido comerciante. dona Cida grita, chamando dona Maria, ela está longe, e não escuta, ela grita novamente e finalmente dona Maria vira-se para o outro lado e avista sua comadre, abre um meio sorriso e diz, com voz terna:
- Dona Cida! Como vai a senhora? E o Seu Germano, vai bem?
A amiga atravessa a rua e vai cumprimentar dona Maria, sorri e diz:
- O Germano tá como sempre, bebendo que nem um cachorro... E eu... Eu estou indo, dona Maria, estou indo, mas minhas costas estão me matando, parece que a dor piorou outra vez.
Coloca a pesada sacola no chão e diz:
- Pois não há de ser nada não, comadre, mas é melhor ver um médico...
Cida concorda:
- Pois é... Eu já falei pro Germano me levar, mas quem falou que ele sai daquele bar? O fígado dele já deve estar podre. Outro dia chegou tão bêbado que dormiu na sala mesmo, acredita?
- Mas ele vai melhorar, eu estou rezando por ele. – Diz dona Maria, com um ar de complacência.
Dona Cida ajeita os óculos sebosos que escorregam pelo seu nariz caído, coloca a mão no ombro de sua comadre e diz, com um ar de aflição:
- Mas eu precisava contar outra coisa para a senhora, dona Maria, lembra da Ivete?
Tenta se lembrar:
- Ivete?
- É! A Ivete. Filha da Conceição. Lembra dela?
Finalmente dona Maria se recorda:
- Sim, sim. Eu me lembro. Não era aquela moça que tinha ido morar na capital e voltou prá modi cuidar da mãe?
- Essa mesmo! – Dona Cida confirma e com um ar consternado dá a trágica notícia: - Tá nas últimas!
Dona Maria se espanta:
- Não me diga uma coisa dessas... Uma moça tão jovem, tão bonita, tão cheia de vida...
Fecha as mãos em forma de concha e as coloca em sua fronte, abaixa um pouco a cabeça e cerra os olhos fortemente, depois de um breve devaneio, ainda com a cabeça baixa, dona Maria diz:
- Vou rezar por ela, hoje mesmo vou visitá-la!
Dona Cida fica enternecida com o gesto de sua amiga, coloca a mão em seu ombro e fala, com a voz emocionada:
- Deus lhe pague por ser uma pessoa tão boa assim, comadre, sua visita vai fazer muito bem à moça...
Dona Maria segura a mão da amiga com afeição, aperta forte e diz, em tom seco:
- Não faço nada além do que Cristo nos ensinou, amai-vos uns aos outros como eu vos amei... Apesar de ser demasiado triste às vezes... Vamos rezar pela alma dessa inocente moça... Agora, me diga, dona Cida, o que aconteceu com ela?
Com um ar de desalento, ela começa a relatar:
- Parece que ela tem câncer, começou na mama... Os médicos tiraram os dois seios dela, ficou toda deformada a coitada...
Dona Maria prestava atenção a cada palavra que sua comadre exprimia, guardava cada vírgula, cada detalhe, enquanto dona Cida continuava a narrativa:
- Faz uns dois anos que ela teve isso, agora parece que o câncer voltou e se alastrou por todo seu corpo, dizem que ela emagreceu tanto que nem parece a mesma pessoa, imagine a senhora... A Conceição tá desesperada, também, imagina só, viúva, a única filha...
Dona Cida para de falar, se dá conta de que cometera uma gafe, dona Maria havia perdido seu único filho anos atrás, depois de um acidente com um trator o ter aleijado e deixado inválido por dois anos num leito de hospital até que finalmente viu a dor do filho ser aliviada pelos braços da morte. Tenta se desculpar:
- Desculpe, comadre... Eu não quis dizer... Sinto muito pelo que aconteceu com seu filho...
Dona Maria aparentemente mantém a calma, um pouco triste diz:
- Não tem problema, não, dona Cida, faz muito tempo... E é verdade, nada se compara a essa dor, nada, a dor de perder um filho... Mas a Conceição deve ser forte, eu já passei por isso e sei como é, sei como é difícil... ás vezes eu preferia estar lá, no lugar do Júnior, agonizando naquele leito...
Esfrega as mãos nos olhos e muda de assunto enquanto se abaixa para pegar a sacola de laranjas que carregava:
- Bem, então é isso, hoje de tarde vou passar no hospital prá visitar a menina. Agora vou andando porque tenho que levar essas laranjas até a creche, as crianças estão esperando... Dê lembranças para o Seu Germano, dona Cida, bom dia.
- Bom dia, dona Maria.
Á medida em que dona Maria se afastava, carregando aquela enorme sacola, sua comadre permanecia ali, admirada de como tanta bondade poderia estar presente em uma só pessoa, admirada de como ela enfrentara os percalços da vida, tantas mágoas e aflições em sua sofrida existência e conseguia nutrir em seu interior tanto amor pelo próximo, tanta religiosidade, tanta benevolência e um enorme senso de justiça.
dona Maria atravessa a rua de paralelepípedos, uma charrete puxada com muito esforço por um frágil pangaré passa pelas suas costas assim que ela acabara de atravessar, em seu rosto, a velha senhora tenta disfarçar, mas é difícil esconder seu olhar de contentamento e um sorriso meio maroto.
As mãos calejadas ainda trabalham incansáveis, dona Maria visita regularmente o pequeno hospital da cidade, prestando o amparo que os pacientes terminais necessitam, enchendo-os de carinho e compaixão. Dando um pouco de esperança a aquelas pessoas que não tem mais perspectivas de futuro, pessoas que sofrem caladas a espera do fim inevitável que está cada vez mais próximo.
Acabara de almoçar, como sempre, pontualmente ás onze horas e já partira para o hospital. Naquela tarde dona Maria chegou mais cedo do que de costume, queria passar mais tempo acalentando a jovem Ivete e sua mãe desesperada, queria poder ajudar a aquela pobre alma que estava tão próxima a encontrar o criador.
Ela bate a porta do quarto, uma voz fraca, quase que um sopro, responde de dentro do quarto: “Pode entrar”, dona Maria abre vagarosamente aquela porta corroída pelo tempo, pedindo licença, meio sem jeito, pede:
- Com licença... Dona Conceição... Ivete... Vim fazer uma visita.
Conceição, sentada numa cadeira ao pé do leito, responde com um ar triste mas visivelmente contente pela visita:
- Dona Maria... Que bom que a senhora veio...
- Amigos são prá essas horas, dona Conceição... E Ivete, como está?
- Está piorando, dona Maria, começou a delirar, não tá falando coisa com coisa, o médico aumentou a dose dos remédios...
Dona Maria vira o olhar para a moça deitada naquela velha cama de madeira de carvalho e vê uma imagem chocante até para os mais fortes. O rosto está desfigurado, esquelético, um branco cadavérico, os olhos fechados se reviram incessantemente, do nariz escorre uma coriza esverdeada, as mãos estão tremulas com uma agulha injetando soro em suas veias. O peito está inchado, mas dona Maria nota claramente que não existem seios, pode perceber as marcas da mutilação mal cicatrizada. Observando o cabelo, dona Maria percebe que está quebradiço, opaco, parece que Ivete está se desfazendo rapidamente, um filete intermitente de lágrima escorre de seus olhos sem brilho.
Ao lado, no criado-mudo, nota-se uma bíblia empoeirada, encima da cama, como em todos os quartos, se encontra uma imagem de Jesus Cristo crucificado. A parede está suja, o lençol em que Ivete está coberta pode-se notar manchas amareladas. Dona Maria repara em cada detalhe da cena, cada minucioso detalhe, percebe como Ivete mexe com as mãos, percebe os movimentos involuntários do tórax inchado, nota o arfar da respiração cada vez mais difícil, tudo, cada detalhe.
Depois de alguns minutos observando aquela imagem em sua frente, Ela puxa outra cadeira que estava encostada na parede e a empurra para a lateral da cama, senta-se calmamente sem tirar os olhos de Ivete, recosta-se e coloca a mão sobre a testa da moça, finalmente diz:
- Ivete... Tenha fé em Deus, só Ele sabe aquilo que é melhor, só Ele te trará a paz eterna...
A pobre moça moribunda abre os olhos, remelas esverdeadas grudam seu globo ocular, com a visão turva, Ivete vocifera algumas palavras ininteligíveis, fazendo um enorme esforço e tomando fôlego, finalmente consegue dizer:
- Dona Maria... Eu quero ser... Forte... Mas... A dor... É tanta...
Com um olhar piedoso, dona Maria responde:
- Deus quer assim! Devemos aceitar os desígnios do pai supremo!
Conceição que está rezando sem parar, segurando um crucifixo, pede:
- Dona Maria, a senhora... Reza por minha Ivete, reza? Por favor...
Imediatamente, tirando do bolso um ensebado terço que sua família guardara durante três gerações, dona Maria prontamente atende ao pedido de Conceição, dizendo:
- Vamos rezar juntas, dona Conceição... – Vira-se para a moça: - Ivete, vou rezar um rosário por você!
Ivete apenas observa sem dizer nada, dona Maria segura as mãos da moça junto com o terço, quando a toca, pode sentir os leves tremores do corpo da garota, agarra mais forte, pressionando o terço cada vez mais contra a mão de Ivete. Continua a falar:
- Vou rezar para que seus pecados sejam perdoados, para que você aceite seu destino!
As rezas prosseguiram até o fim da tarde, quando o horário de visitas chegou ao fim.
E a vida de resignação de dona Maria segue seu rumo, caridade e abnegação, uma marca daquela frágil e encarquilhada senhora. Naquela noite, ela não conseguia dormir, revirava-se na sua velha caminha corroída pelos cupins que rangia de uma maneira infernal, o calor também atrapalhava um pouco o sono, no mês de janeiro era realmente insuportável morar em São José das Oliveiras. Sem conseguir dormir, ficava se lembrando de Ivete, a imagem daquele rosto carcomido não lhe saía da cabeça, sentia um ímpeto de passar no dia seguinte lá novamente, sentia uma estranha vontade de olhar mais uma vez aquela outrora belíssima moça que agora era apenas pele e osso. Quando finalmente pega no sono, apenas cochila, minutos depois acorda, já é alta madrugada e a sinfonia de grilos no quintal começa a irritá-la de uma maneira ímpar, aquele barulho que não para faz com que ela passe a noite em claro, revivendo as cenas do dia que acabou de passar.
Já está quase amanhecendo quando finalmente dona Maria pega no sono, mas o galo canta e já é hora de despertar. Ela se levanta com uma agilidade enorme para uma pessoa com mais de setenta anos, prepara um chá de camomila e sai para a rua, rumando para o hospital, onde passará mais um dia de rezas e mensagens positivas para tentar acalentar Ivete e sua mãe, Conceição.
CONTINUA...
4 de dezembro de 2009
NO LIMIAR DA ANTROPOFAGIA - Parte 1 - Conto - Dimitri Kozma
Seções: Contos, Dimitri Kozma, horror, No Limiar da Antropofagia, textos
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historia bem grafica e envolvente, gostei!
ResponderExcluirObrigado! :-)
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