(conclusão da história postada em 11/06)
No dia seguinte, logo cedo, Felipe já está de pé. Deverá ir a uma entrevista para um estágio que pode significar seu futuro profissional. Veste seu melhor terno de linho azul marinho, feito sob medida, ajeita a gravata de pura seda e chama um taxi, que o leva até o escritório.
Chegando lá, comunica sua presença á secretária, que lhe pareceu uma morena bem ajeitada.
- Bom dia. – Diz Felipe, empostando-se.
- Bom dia, pois não?
Aquela voz de veludo parecia acariciar seus ouvidos, ele então, cada vez mais interessado naquela garota, que deveria Ter no máximo uns vinte anos, rosto angelical e um cabelo enorme que escorria pelas costas. Toma fôlego e fala:
- Meu nome é Felipe, vim falar com o doutor Osvaldo, ele disse que tinha uma vaga de estagiário para mim.
- Ah sim! – Pega o telefone e fala: - Doutor Osvaldo, O rapaz que veio falar sobre o estágio está aqui... Sim, está certo.
Coloca o telefone no gancho e vira-se para Felipe:
- Pode se sentar ali, o Doutor Osvaldo já vai falar com você.
Sem conseguir parar de fitar aquele rosto maravilhoso, ele responde automaticamente:
- Tudo bem.
Senta-se num canto da sala e começa a observar o lugar. Na parede uma imagem de Nossa Senhora de Aparecida parecia invadir a sala inteira. As revistas que estavam disponíveis para a leitura eram periódicos religiosos de uma igreja evangélica. Por curiosidade, Felipe pegou um exemplar e começou a folhear. Olhava as orações, as graças alcançadas pelos fiéis daquela igreja e intimamente achava uma enorme graça naquilo tudo. Era uma igreja que possuía cadeias de rádio e TV espalhadas pelo país inteiro.
A moça ao ver o interesse de Felipe por aquela publicação, diz:
- Você é da igreja também?
Imaginando não Ter ouvido direito, Felipe pergunta:
- Desculpa, não entendi...
- Da igreja, você também freqüenta a “igreja Mundial”?
Ele arregala os olhos, pensa: “Ela está achando que eu sou ignorante?”, quando está prestes a responder algum desaforo, olha novamente aquele rostinho angelical e pensa que talvez não fosse uma má idéia levar os fatos a um outro lado, algo o impele a dizer gaguejando:
- Sim...
Ela abre um sorriso estonteante e diz:
- Que bom! Sabia que você era um dos nossos. Sabia que você era um Gideão.
“Gideão?”, pensa com escárnio Felipe, “Pobre menina, sendo comandada por um bando de bandidos que só querem dinheiro.”.
- Qual filial da igreja Mundial você freqüenta?
- Eu? Freqüento aquela que fica aqui perto... – Tenta disfarçar.
- Aqui perto? Ah! Já sei. Freqüenta a igreja da Lapa, né?
Aliviado, Felipe confirma:
- Isso mesmo! A da Lapa, já foi lá? É maravilhosa.
- Fui uma vez só. Mas ela é pequena, não achei tão maravilhosa assim. – Espanta-se a garota.
- Eu digo que é maravilhosa por causa do poder divino que está lá dentro, entende? Não por sua aparência. Deus está naquela igreja inteira, eu sinto em meus poros cada vez que entro lá.
Ela se surpreende com tanta religiosidade:
- Nossa! Nunca ouvi ninguém dizer algo tão bonito, tão maravilhoso. Você deve ser uma pessoa iluminada.
Percebendo que o jogo está funcionando, Felipe continua:
- Eu não sou nada diante do poder de Deus, não sou uma ínfima partícula do que Deus e o Nosso Senhor Jesus Cristo representam. Eles sim são maravilhosos. Qual é seu nome?
Com as mão caídas sobre as pernas, a menina responde:
- Eu me chamo Elianete.
- Muito prazer, Elianete.
- Você é tão religioso, Felipe. É difícil encontrar alguém assim hoje em dia, sabia?
Ele se levanta e se aproxima um pouco mais da garota, mantendo uma certa distância.
- Pois eu digo o mesmo. É difícil encontrar uma pessoa com a mesma religiosidade minha... Parece que você é assim, não?
Meio tímida, Elianete concorda:
- Acho que sim. – Abaixa o olhar.
Neste instante o telefone toca. É o doutor Osvaldo pedindo para Felipe entrar:
- Felipe, pode entrar, doutor Osvaldo está chamando.
Quando ele coloca a mão na maçaneta da porta, Elianete diz:
- Estou torcendo por você, viu?
Ele sorri ligeiramente e diz:
- Obrigado.
Abre a porta e entra vagarosamente.
¤
- Pode se sentar, meu filho!
Doutor Osvaldo era um advogado decadente. Seu escritório estava velho, decrépito, ele era um senhor de meia idade, olhos fundos, escuros. Sua pele era de um branco quase fantasmagórico. Tinha um semblante pesado, aparentava um cansaço no limite do sepulcral.
Felipe puxa a cadeira e senta-se, apenas observando:
- Pois bem, então você viu o anúncio no jornal, não é?
Felipe é expansivo:
- Sim senhor. Eu me interessei pelo estágio, sabe como é, estou no último ano de faculdade e depois disso eu vou precisar Ter um emprego fixo.
Osvaldo acende um charuto fedorento, dá uma baforada, aquela fumaça espessa viaja por toda a sala, indo parar justamente no nariz do jovem Felipe.
- Bem, esse estágio é o seguinte, a crise está feia, não disponho de capital suficiente para pagá-lo...
- Sei como andam as coisas, doutor Osvaldo. Sei que está difícil e imagino que eu não vá ganhar muito mesmo.
O velho advogado dá uma longa baforada no charuto e diz:
- Você não entendeu, eu disse que não disponho de capital para pagá-lo. O estágio não será remunerado, mas você poderá aprender bastante se trabalhar aqui.
Felipe se espanta:
- O quê? Não é remunerado?
- Não, infelizmente meu escritório está passando por uma crise, tive que mandar embora vários funcionários. Sabe quantos funcionários fixos eu tinha trabalhando aqui há uns dois meses? Tinha cinco funcionários, agora com a crise tive que mandar quase todos embora, só sobrou a secretária, que não vai ficar por muito tempo também.
O garoto, ainda espantado diz:
- Entendo como é, as coisas não estão fáceis, mas...
Doutor Osvaldo o interrompe:
- E olha que não sei por quanto tempo eu vou conseguir manter esse escritório aberto...
Felipe começa a pensar, sua cabeça trabalha numa velocidade incomparável, alguns segundos depois toma a decisão:
- Bem, senhor, infelizmente não vai ser possível eu trabalhar aqui. Espero que o senhor entenda, não posso trabalhar de graça, já sou quase um profissional, conheço muito bem as leis, conheço o código penal por todos seus aspectos, entendo de direito civil como ninguém... Bem, foi um prazer conhecê-lo, mas...
- Eu entendo, meu filho. Você tem um futuro brilhante pela frente. Deus tem um destino maravilhoso traçado para você.
“Mais uma vez Deus!” Pensa Felipe, já contrariado por Ter perdido seu tempo em vir conversar com este decadente profissional. Despedem-se com um leve aperto de mãos e Felipe vira as costas.
¤
Voltando a sala de espera, Elianete está apreensiva:
- E aí, Felipe, como foi?
Ele fecha a porta e diz:
- Esse cara só sabe enganar as pessoas, ele é um canal... – Antes de completar a frase, ele se lembra que um religioso não é dado a estes rompantes de fúria, então se aquieta e continua: - Digo... Ele não conhece os desígnios de Deus! Ele deve estar sendo dominado pelo diabo, isso sim.
Elianete arregala os olhos:
- Como assim?
- Queria que eu trabalhasse de graça para ele, não me espantaria em nada se ele estiver fazendo o mesmo com você.
A garota olha para o outro lado, um pouco envergonhada concorda:
- Sim, é verdade. Ele não paga meu salário há dois meses.
Indignado, Felipe conclui:
- Isso é um absurdo! Você não merece isso! – Muda o olhar para algo entre o terno e o apaixonado: - Venha, saia desse lugar. Ele não merece essa dedicação toda.
- Mas... Felipe, o que você está pensando em fazer?
Parado naquela sala, de braços cruzados olhando fixo para a imagem de Nossa Senhora da Aparecida uma idéia flui em sua mente em um lampejo de criatividade. Felipe então sabe qual o caminho a seguir:
- Elianete! Já sei.
¤
Dois meses depois Cristian anda por uma movimentada rua no centro da cidade, não via mais Felipe, que trancara a sua matrícula na faculdade há algum tempo. Todos acharam estranho, pois Felipe era um dos alunos mais aplicados da sala, largar um curso que faltava pouco menos de cinco meses para acabar parecia loucura, mas ele o fez e depois disso nunca mais deu as caras para rever os amigos.
Cristian percorria aquele centro repleto de populares percorrendo freneticamente pelas calçadas abarrotadas de camelôs vendendo quinquilharias importadas sem qualidade. Gritos de pessoas vendendo bugigangas inúteis podiam ser ouvidos do outro quarteirão. Um forte cheiro de urina empesteava as narinas de qualquer um que transitasse por ali.
Entre esse caos todo, Cristian ouve uma voz se destacando em meio a multidão, uma voz que lhe parecia familiar. Resolve parar e ver de onde vinha aquele alarido que destoava a todos aqueles outros sons que poluíam sonoramente as ruas. Percebe que vinha de uma praça, vai até lá e vê uma pequena multidão aglomerada assistindo a um culto. Afasta aos poucos alguns dos fiéis que assistia a aquela algazarra e constata aquilo que jamais imaginaria que pudesse acontecer.
Ao centro daquela roda formada por populares desdentados, doentes e pobres estava Felipe, vestindo o mesmo terno de linho azul marinho ,já um pouco puído, que sempre vestia em ocasiões especiais, segurando uma bíblia nas mãos, o rosto franzido, como se clamasse pela misericórdia divina. Ao seu lado estava Elianete, saia comprida, cabelos até a cintura, as mãos no coração, olhos fechados clamando pelo senhor. Ao chão, Cristian observou uma sacolinha repleta de donativos, moedas, notas, relógios, correntinhas de ouro e cheques.
O suor vertia sem parar pelo rosto de Felipe, seus olhos estavam fortemente fechados, ele olhava para cima enquanto seu corpo permanecia ligeiramente curvado. Gritava veementemente num tom de lamúria infinita:
- Deus! Deus é a salvação! Vocês irmãos, vocês que querem um cantinho no céu. Vocês devem aceitar Deus como o único salvador, o único que pode te tirar do buraco em que está! Deus é o pai de todos nós. Ele vai te tirar da miséria, da desgraça, da prostituição. Só Ele pode nos salvar do apocalipse! Ele é a salvação! Deus é a salvação!
¤
FIM
18 de junho de 2008
ATEU GRAÇAS A DEUS - Parte Final - Conto de Dimitri Kozma
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