Felipe franze a testa para o amigo:
- Já te disse, Cristian, Deus é uma mentira!
Sentados a uma mesa num bar, os dois discutem a existência ou não de Deus:
- Felipe, não diga isso! Deus é nosso pai supremo. Criador de tudo e todos.
- Você acha isso sabe porque? – Antes de esperar a resposta do amigo, Felipe vai logo respondendo: - Porque esse realmente é um assunto complicadíssimo de se pensar... Envolve vários tabus e padrões que já estão de alguma forma aferroados ao nosso cérebro. Muitas vezes as pessoas não conseguem se desvencilhar dos preconceitos e das idéias prontas em que acreditamos, ou que nos forçam a acreditar, entende?
Cristian balança a cabeça negativamente, Felipe continua:
- É o seguinte, vou explicar o que eu acho. – Dá um gole no conhaque que o garçom acabara de trazer, faz uma careta ao sentir o fogo descendo por sua goela e continua: - Desde pequeno você foi educado para acreditar em alguma coisa que não existe e ninguém pode provar sua existência...
O amigo interrompe:
- Espera aí, Felipe, como não pode provar? E Jesus Cristo?
- Jesus Cristo foi um cara muito esperto que viveu num tempo em que qualquer mágico poderia ser considerado o filho de Deus. Naquela época era fácil enganar o povo, que não era mais do que um bando de bárbaros selvagens. Hoje em dia jamais apareceria alguém capaz de se dizer o “filho de Deus”, sabe porque? Porque a mentira cairia por terra.
Meio sem jeito, Cristian tenta argumentar:
- Não é bem assim... E os escritos? A bíblia?
Com um olhar sarcástico, Felipe responde:
- E você acredita mesmo naquelas besteiras escritas por um bando de fanáticos que queriam montar uma religião? Um monte de historinhas que partiram de mentes férteis desses que podem ser considerados os pioneiros da publicidade. É isso que é a bíblia. Eu mesmo poderia escrever uma hoje e daqui a algumas centenas de anos todos vão acreditar naquilo que escrevi e vai se tornar uma verdade, entende? Uma mentira repetida tantas vezes até virar verdade.
- Para com isso, Felipe. Não gosto quando você fala essas coisas...
- É difícil encarar a verdade de frente, não é?
Segurando o copo de conhaque com as duas mãos para aquecê-lo, Cristian mantém a cabeça abaixada enquanto retruca:
- Não é isso! Você nunca vai me convencer do contrário. Deus existe. Eu acredito na existência dele e ponto final.
Felipe sorri meio cinicamente ao dizer:
- Fé cega em algo onde as provas levam a acreditar que é uma mentira deslavada? Você, Cristian, um quarto-anista da faculdade de direito? Isso chega a ser no mínimo vergonhoso... Mas quem sou eu para mudar a concepção de uma pessoa? O tempo vai te dizer, meu amigo, o tempo vai dizer.
- Vamos ver quem vai estar errado daqui uns anos. – Retruca Cristian, um pouco incomodado.
- Sabe em que eu acredito? Daqui há algumas centenas de anos Deus vai ser considerado um objeto de estudo curioso de um povo primitivo. Assim como hoje é a mitologia, no futuro será a existência de Deus, de Jesus Cristo, de Maria e todos os outros adereços criados para induzir as pessoas a fazerem o que é melhor para o sistema. No futuro Deus terá apenas um curioso aspecto histórico. Infelizmente não viverei para ver isso, essa mudança não deverá acontecer em menos de três mil anos.
- Você acredita mesmo nisso? Que Deus vai virar um mito?
Fazendo sinal chamando o garçom, Felipe responde:
- Mas é óbvio! O problema é que será bem provável que depois de Deus, o homem invente um outro ser superior para adorar, o ser humano precisa disso, precisa se inferiorizar diante de um ser que não pode provar a existência, precisa encontrar um sentido para a vida no lugar de simplesmente viver sem fazer o mal aos outros.
O garçom surge ao lado e gentilmente pergunta:
- Os senhores querem mais alguma coisa?
- Sim, traga uma porção de fritas, por favor. – Pede Felipe.
Cristian espera o garçom se retirar e diz:
- Eu acho você sético demais, Felipe...
- E não é prá ser cético nesse mundo? Vivemos numa sociedade que valoriza o consumo, o capital...
- Agora está se contradizendo. Você é uma prova concreta dessa sociedade que valoriza o capital. Não acredita em nada que não se pode provar.
Felipe se explica:
- Não é isso. Você não entendeu, eu quero dizer o seguinte: Essa sociedade valoriza os bens, valoriza o Ter. Esqueceram de pensar nas pessoas, entende? Por isso é que eu resolvi ser advogado, exatamente por isso, eu estou cansado de se mobilizarem prá fazer algo em causa própria. Quero mudar isso, quero mudar o modo de observar das pessoas.
- E você acha que Deus é nocivo para nossa sociedade?
- Não sei se é nocivo. Ele pode até ajudar a quem não tem a ética, quem não consegue discernir qual é o seu limite. Mas na maior parte das vezes acaba influenciando negativamente, veja só os fanáticos, as seitas que se valem da boa fé do povo e acabam por prejudicá-los, roubando descaradamente.
- Mas isso não é uma regra. – Retruca Cristian, enquanto dá um curto gole no conhaque – A igreja católica por exemplo não é assim.
- Como não? – Felipe grita indignado – Como não? Esqueceu da idade média? Esqueceu de todas as atrocidades que cometeram?
- Mas isso foi no passado.
- O Deus deles era o mesmo de hoje, não?
Esperando uma resposta, Felipe se cala por alguns instantes, mas Cristian permanece calado, reflexivo. Felipe então continua:
- E digo mais: Deus? Ele não pode tudo? Não sabe tudo? Não vê tudo? Tudo bem, então cadê esse Deus quando uma criança vai brincar com álcool e fósforos e queima vivo o irmão mais novo? Cadê esse Deus presente, vivo, ativo e fraterno que deveria estar ajudando àquelas pessoas que estão passando por dificuldades? Aquelas pessoas que passam fome, não tem onde morar, tem gente que fala que as pessoas que passam fome agora é prá "compensar" o que passaram de bom nas outras vidas. Ué... mas Deus não é amor? Deus não é o bem? Então como ele pode ser tão vingativo??? O bem não é um direito? Se passamos uma vida bem, precisamos passar a próxima mal prá poder agradar a Deus?
Cristian argumenta:
- Mas Deus também não pode fazer tudo para nós. Nós não podemos pular de um prédio pensando: "se Deus existe e ele é bom, não vai me deixar morrer e vai me salvar de alguma maneira." Deus dotou o homem com o livre-arbítrio, pode fazer sua escolha entre o bem e o mal.
- O bem e o mal? Cristian, isso é maniqueísmo puro! Nós sabemos muito bem que não pode ser visto assim. Não existe o bem absoluto e nem o mal por completo em uma pessoa. O ser humano é caracterizado por essa dicotomia, essa dualidade que faz de cada homem uma espécie rara e exclusiva. Um ser humano é dotado de partes nobres e partes perversas, não importa o quanto esconda, no íntimo a pessoa sabe que tem esse lado obscuro. É completamente normal e não vamos misturar isso com a existência ou não de Deus, por favor.
O garçom chega trazendo um prato fundo com batatas fritas. Felipe come uma e faz uma careta, chama o garçom e diz:
- Essas batatas estão oleosas demais, olha só. – Levanta um punhado com as mãos e o óleo começa a pingar na mesa.
- Sinto muito, senhor, vou trocar agora mesmo.
O gentil garçom pega o prato e se retira, Felipe continua a falar:
- Deus não existe, não existe essa coisa de culparem Deus por tudo. Os que passam fome por exemplo, sofrem porque o governo não tem uma distribuição de renda adequada, mas essa é a política predominante no mundo: neo-liberalismo. Esse tipo de política fez com que eles passassem fome. Eles não estão passando por isso por causa de vidas passadas mas sim por causa da incompetência de outros homens.
Cristian rebate, reafirmando sua crença:
- Não acho que Deus pode ser culpado por isso... principalmente porque fomos nós quem criamos tudo isso... Ele nos deu a natureza e nós estamos destruindo... Ele deu terra suficiente a todos, mas alguns se apoderam demais e deixam outros sem...Para mim Deus é amor. O que existe é falta de Deus. As pessoas que matam umas às outras e que são más, estão com falta de amor, falta de Deus. O Diabo está ficando cada vez mais forte.
- Diabo? O que é o Diabo senão a personificação do mal já intrínseco ao ser humano.
- Eu acho você radical demais, Felipe.
- Radical? Eu? Só porque eu tenho capacidade suficiente para perceber que tudo se trata de um grande embuste? De uma farsa que já dura mais de dois mil anos e nada é feito? Eu tenho dó de você, Cristian, que acredita nessa fantasia infantil.
Segurando fortemente o copo quase vazio, Cristian quase berra:
- A igreja faz bem para nosso espírito, Deus nos dá uma paz interior que nos conforta...
Antes que o amigo possa completar, Felipe já vai interrompendo:
- Desculpe a minha ignorância, a minha incultura, a minha inconformidade tipicamente adolescente e estúpida, embora eu já tenha passado um pouco da idade, mas eu confesso: eu não entendo... – Dá um gole e se explica: - O que é pecado? Um homossexual por exemplo, comete pecado por ser homossexual? Tá, ele ama pessoas de forma diferente, não se prende ao sexo da pessoa, embora eu ache repugnante dois homens vivendo juntos e tudo mais, mas daí a dizer que é pecado... Tudo bem, vamos admitir que sexo é pecado, certo? Então vamos todos salvar nossas almas e nunca mais fazer sexo... O que aconteceria? Nada demais... apenas seríamos a última geração de seres humanos...
Cristian interrompe:
- Deus aceita o sexo apenas para fins de procriação, isso é bíblico.
- Mais uma coisa que eu não consigo entender... Acho que os lunáticos que escreveram a bíblia ou eram impotentes ou tinham algum desvio sério. Onde viram maldade no sexo? Onde?
Mudando ligeiramente de assunto, o amigo pergunta:
- Então me responda, Felipe, de onde viemos?
- Eu admito, é claro que a gente não pode ter surgido do nada, é claro que o nosso planetinha e todo esse universo não pode Ter surgido do vácuo... se é que esse grande universo lá fora realmente existe... Mas e se foi apenas um acidente...
- De onde viemos então? – Insiste Cristian.
- Supondo que viemos de Deus... Pois bem, Cristian, então me responda: De onde veio Deus?
Por alguns segundos ele pensa numa resposta, mas não consegue chegar a nenhuma conclusão.
- Sem resposta, não é? – diz sarcasticamente, Felipe – Pois então me responda mais uma pergunta: Seu Deus é tão poderoso, pode tudo, sabe tudo e está em tudo, não é?
- Sim, claro.
- Pois me responda: Seu Deus seria capaz de criar uma pedra que ele mesmo não pudesse levantar?
- Como é?
- Isso mesmo: Se ele pode tudo, seu Deus é capaz de criar uma pedra, tão pesada que ele mesmo não pudesse levantar?
Depois de alguns instantes pensando, Cristian responde, titubeante:
- Poderia...
- Pois então ele não consegue tudo, se ele não consegue levantar essa pedra ele não consegue tudo. Não é Deus!
- Espere, não pode criar a pedra não... – Rapidamente Cristian muda de opinião.
- Pois então ele não é Deus, se não pode criar esta pedra, ele não é Deus, não pode tudo.
Cristian permanece refletindo por alguns instantes e perde a paciência:
- Isso não tem nada a ver.
- Pense um pouco e verá que tem muito a ver. Bem, meu amigo, sei que jamais vou conseguir convencê-lo, você tem uma fé incondicional, jamais poderá ser mudada por um agente externo... Quem sabe um dia você mesmo não perceba tudo que falamos? Um dia a gente volta a conversar sobre isso...
Dá mais um gole, coloca o copo sobre a mesa e esfrega as mãos, tentando espantar o frio que teima em arder em seus ossos.
Alguns minutos se passam e os dois amigos já mudaram de assunto. Estudam juntos desde os tempos de colégio, Felipe sempre foi um rapaz altivo, tinha pouco mais de vinte anos, falava com desenvoltura e por isso escolhera a faculdade de direito. Tinha planos futuros de mudar o mundo, acabar com esta podridão que impera no país, diferente de Cristian, seu colega e melhor amigo, um rapaz de formação religiosa e pouco atraente.
Costumavam sair todas as noites depois das longas aulas que se arrastavam como monólogos infindáveis, principalmente para Cristian, que não entendia muito bem o que o professor queria dizer.
Embriagavam-se com conhaque freqüentemente e não eram poucas as vezes em que voltavam para suas casas completamente bêbados. O assunto predileto de Felipe era discutir religião, uma vez chegou a bater boca com um membro das Testemunhas de Jeová que lhe bateram á porta. Felipe falou tanto sobre a não existência de Deus que o pobre homem saiu esconjurando-lhe aos berros.
O garçom chega com as batatas fritas e Felipe prova uma, dizendo em seguida, com a boca cheia:
- Agora sim! Dessa vez está boa, obrigado.
Com uma voracidade espantosa, ele começa a devorar aquelas batatas, o garçom se afasta e Felipe oferece para Cristian:
- Pega aí, Cristian.
Meio desanimado, o amigo declina:
- Obrigado, mas estou com dor de estômago.
Felipe tenta resistir, mas não agüenta e solta a provocação:
- Deus cura.
Cristian olha com uma cara de reprovação e tranca o rosto. Felipe não se dá conta e continua a comer.
(... continua - não perca o final da história!)
11 de junho de 2008
ATEU GRAÇAS A DEUS - Conto de Dimitri Kozma
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