A madrugada descia rápida e seu único acalanto eram as folhas amareladas de jornal da semana passada que o cobriam e protegiam seu velho corpo do frio. Jamais tivera um momento de felicidade em sua existência, jamais conhecera um ombro amigo que o ajudasse a sair daquela condição sub-humana em que vivia, poderia morrer ali que não encontraria uma boa alma para cuidar de seu enterro, seria jogado numa vala comum, sem ao menos um nome para identificá-lo.
José da Silva viera do nordeste tentar a vida na cidade grande, repleto de sonhos na cabeça, deixou a mulher, grávida de três meses e mais cinco filhos para trás, tinham uma casinha modesta perdida no meio da caatinga, plantavam o que consumiam e tinham um sustento garantido. José prometera que quando a situação melhorasse ele voltaria para pegá-los, achava que não teria dificuldade de conseguir um emprego como ajudante de obras, ou algo semelhante, achava que chegando na capital, encontraria as portas abertas, mas ao chegar deparou-se com a dura realidade, toda sua esparsa bagagem foi roubada ainda no ônibus, todos os seus documentos desapareceram. Zé agora não tinha mais nome, não era ninguém, nem um Zé qualquer ele era.
Não tendo onde morar, ele acomodou-se embaixo de um grande viaduto no centro da cidade, sem dinheiro para voltar, via seu futuro desmoronar como castelos de cartas, via o fim se aproximando e seu cinto se apertando cada vez mais, a fome doía como agulhas perfurando seu estômago sofrido. Não teve outra opção a não ser a de pedir dinheiro nos faróis do centro, mas sua aparência repugnante, aspecto sujo e feições amedrontadoras provocavam um certo temor nos motoristas, que fechavam os vidros assim que Zé se aproximasse. Raras eram as pessoas que ofereciam um trocado para ele e mais raras ainda eram os trocados que passassem de alguns míseros centavos que estavam jogados pelo carro.
Isso doía em Zé, ele sempre prezou o respeito pelo próximo, ajudava todos que precisassem de algo quando morava com sua família, cada negativa que recebia sentia-se mais menosprezado, mais a margem de uma sociedade que o tentava expurgar como a um câncer nocivo a todos, doía em sua alma calejada ser tratado como a um cão sarnento que atrapalhava a vida de todas aquelas pessoas ocupadas com seus trabalhos importantes enquanto Zé não era nada. Um zero a esquerda.
Seus dentes apodreceram rapidamente, suas unhas cresceram de uma maneira desproporcional, seus cabelos crespos estavam emplastrados e sebosos, seu cheiro era forte e não saía nem quando tomava um banho rápido no chafariz da praça principal.
A cada dia, sua condição de ser humano era reduzida a um rascunho mal acabado. Para alimentar-se, procurava restos no lixo, revirava latas e comia os detritos de comida despejados no chão depois das feiras, muitas vezes já apodrecidos, essa comida o envenenava cada vez mais, seu corpo exalava um odor pútrido de carne deteriorada.
Com o dinheiro que ganhava, ele investia em cachaça, comprava uma garrafa e a bebia em um dia ou menos, este era seu consolo, seu único alívio para a dor e a miséria. Vivia na maior do tempo com o álcool na cabeça, permanecia permanentemente em estado de embriagues.
Nas noites frias, Zé cobre-se com jornais e algumas caixas de papelão, algumas vezes acendia uma fogueira para espantar a dor dos ossos castigados. Encolhia-se num canto e permanecia ali, até o dia seguinte, quando reiniciava sua infindável via sacra no caminho da sobrevivência.
Certa vez, Zé acordou com uma forte dor no estômago, sentia pontadas infernais que o fazia se contorcer em espasmos terríveis. Nada pode fazer, a não ser esperar pelo fim que poderia não tardar em chegar, permanecia ali, maturando aquela que poderia ser uma úlcera. Mas a natureza encarregou-se de curá-lo, em dois dias, tinha se recuperado, e estava de volta á garrafa de pinga barata comprada no bar da esquina.
¤
Um certo dia ensolarado, Zé não pode explicar, mas sentiu que aquele poderia ser seu dia de sorte, sentiu que uma estrela brilhava no céu a seu favor. Acordou e guardou suas coisas, como de costume, em um buraco na parede do viaduto em que morava e saiu pela rua, caminhando sem destino, numa infindável busca de algo que nem ele mesmo saberia o que. Uma salvação que viria e Deus.
Zé passa na frente de uma igreja evangélica, não há culto aquela hora, mas ela está aberta, não há ninguém na porta, mas dentro ele pode observar umas duas ou três pessoas rezando em silêncio, por alguns segundos Zé observa aquela reza introspectiva e pessoal, olha para os lados, esperando que alguém o fosse barrar e entra, meio encolhido, percebe que ninguém o abordou e senta-se em uma das cadeiras plásticas na parte de trás do templo religioso.
Fecha os olhos e começa sua reza, pede que aquele sofrimento chegue ao fim, que aquilo melhore ou termine de vez, pede que Deus tenha piedade de sua alma, que o perdoe por abandonar sua família, enfim, implora de todas as formas a salvação divina.
A bebida ainda fazia efeito em sua mente, não conseguia concatenar pensamentos coerentes quando uma mão é colocada sobre seu ombro, ele apenas abre os olhos, enquanto uma voz carismática diz:
- Amigo, você quer ganhar um lanche de graça?
Zé vira-se mais do que depressa, olha e vê um homem bem arrumado, terno de linho preto, gravata, cabelo penteado e um ar superior, sem acreditar no que ouviu, ainda meio atordoado, pergunta:
- O que?
Ainda com a mão no ombro do indigente, mas já tirando, o homem repete:
- Um lanche de graça. Quer ganhar ou não?
Zé evitava falar muito:
- Claro
- É o seguinte, amigo, você vai ter que fazer um favor aqui na igreja, topa?
Ainda sentado, mas começando a se levantar ele diz:
- Sim... Mas o que?
- Olha, é bem simples. Você vai ficar aqui esperando até nosso culto de noite, as oito e meia. Quando a gente te chamar, você vai fingir que está com o diabo no corpo, é só falar grosso, se contorcer, falar algumas palavras demoníacas, coisa e tal... nada muito difícil, a gente guia você, não tem como errar. Depois do culto, a gente te dá um lanche. O que acha?
Com a perspectiva de receber uma tão sonhada refeição, Zé percebe que será um custo baixo para finalmente, depois de um dia e meio sem colocar nada na boca, se deleitar com comida de verdade. Demonstra interesse, mas pergunta:
- É, é muito bom da parte do senhor, mas... não tem pobrema fazer isso? Será que não vai dá complicação?
- Que nada! Fica sossegado que você vai dar um show, além do mais, você não vai estar sozinho, antes de você uma mulher vai estar fingindo também, então você presta atenção nela e faz parecido, não vai ter nenhum problema.
Olhando para o chão, com um ar de felicidade, Zé finalmente agradece:
- Brigado, senhor, Deus te pague. O senhor é muito bom. Brigado!
Enquanto leva Zé pelo braço até a porta da igreja, o pastor diz:
- Não é nada, você merece, amigo, você é filho de Deus e merece esse prêmio.
Já na porta da igreja, enquanto Zé fica na rua, o pastor, do lado de dentro, reforça: - “Esteja aqui as oito horas, assista ao culto daqui do fundo da igreja e quando eu chamar, você vai lá no altar. Não esqueça de prestar atenção na mulher que vai se apresentar antes de você, tá combinado?”, Zé olha novamente para o chão e confirma:
- Sim senhor, pastor, combinado. Oito horas!
¤
O dia demora a passar, Zé permanece a um quarteirão longe da igreja, sentado num chão úmido, ele sonha com a tão sonhada fama que terá a noite, imagina como será quando pisar naquele altar e receber a atenção de todos. Seu estômago dói, arde como brasa, compra mais uma garrafa de pinga depois de pedir por uma hora dinheiro nos faróis, o álcool amortece a dor que queima, a dor se vai junto com a angústia.
De tarde, Zé vai até o chafariz da praça, deve tomar um bom banho para sua estréia no mundo artístico, afinal ele será um astro hoje. “Quem sabe se não me contratam?” pensa ele, com uma ingenuidade fenomenal. Cambaleia e mal consegue entrar no chafariz, molha as axilas e enfia a cabeça na água, depois de quase se afogar, sai mais cambaleante ainda, coloca a velha camisa rasgada, e se perfuma esfregando as folhas verdes de um limoeiro por todo o corpo.
¤
(... continua - não perca o final da história!)
29 de maio de 2008
UM POBRE DIABO - Conto de Dimitri Kozma
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Até agora gostei, depois vejamos.
ResponderExcluirPostei sobre o filme Across The Universe, apareça por lá:
wwwrenatacordeiro.blogspot.com/
não há ponto depois de www
Um beijo,
RENATA MARIA PARREIRA CORDEIRO
Com a experiencia dos contos de horror antigos, tenho medo de ler a continuação... de ver o que vai acontecer com esse pobre homem. Só o começo da estoria, sua vida de me mendigo me comoveu muito.
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