8 de maio de 2008

UM FILHO PERFEITO - Parte Final - Conto de Dimitri Kozma

(continuação da história postada em 06/05)


Julia leva sua gestação com uma melancolia absurda, não se alimenta direito, sai de casa apenas quando Luciano a leva ao médico, diz apenas o essencial, seu olhar reflete uma amargura nunca vista, uma melancolia doentia e patética. Quando fica sozinha em casa, permanece no quarto do bebê, olhando para aqueles brinquedos e imaginando, percebe que seu filho nunca poderá brincar com eles, nunca poderá falar, nunca poderá ter amigos, que viverá sua vida enclausurado naquele quarto, sozinho, jamais poderá viver.

Ela acaricia sua barriga, lembrando-se das vezes em que vira crianças com paralisia cerebral aparecendo naqueles programas sensacionalistas da televisão, lembrando-se de sua reação de asco que tivera ao ver certa vez uma criança com problemas se contorcendo diante das câmeras.
Pensava: “Será isso castigo? Castigo de Deus?”, era católica, não exercia, mas recebera uma educação católica desde pequena de seus pais, quando era menor, ia a igreja todos os domingos, acreditava piamente em Deus, e acreditava que aquilo que caíra sobre sua cabeça era castigo, por tudo que já havia feito de ruim na vida. Não que ela tenho feito o mal para alguém, mas levava em sua lembrança marcas de infância de que era uma menina má. E isso ela carregara para sua vida adulta.

Os meses seguintes trouxeram cada vez mais melancolia, Julia já não podia falar, vivia em devaneios. Para ela a vida havia acabado ali, não existiria mais perspectivas de um futuro, teria que viver em função daquele ser que viria acabar com a paz. Imaginava que em seu ventre estava sendo gerado um demônio, algo que viria apenas para destruir.

¤

Quatro meses depois, Luciano trabalhava quando recebeu um telefonema, uma voz feminina:
- Gostaria de falar com o Luciano... É urgente!
- É ele! Pois não?
- Senhor Luciano, aqui é do hospital Sagrado Coração, sua esposa sofreu um acidente, está internada aqui, por favor, venha para cá urgente.
Luciano se desespera:
- Acidente? O que aconteceu? Como ela está? E meu filho?
- Infelizmente não posso dar informações pelo telefone. Venha urgente para cá.
Sem hesitar, Luciano sai correndo, sem dar satisfações para ninguém, chega ao hospital e vai direto ao balcão de informações:
- Por favor, Julia Amorin, ela deve estar internada aqui...
A mulher do balcão, uma velha corpulenta, diz: “Só um momentinho” e liga para um ramal no telefone. Luciano olha ao redor por um instante e finalmente ela diz:
- Ela está na Seção B, setor 47.
Nem agradece e já sai em disparada pelos corredores abarrotados de gente. Finalmente chega ao setor, começa a gritar e interpelar todos os médicos: “Júlia Amorin! Por favor, onde está Julia Amorin? Por favor!”, um jovem médico que passava diz:
- Você deve ser Luciano?
Ele vira-se e diz ansioso:
- Sim! Sou eu, Onde está minha mulher?
- Venha comigo.
Enquanto anda por um enorme corredor, o médico vai lhe explicando:
- Senhor Luciano. Sua esposa sofreu um acidente muito grave, parece que ela se jogou na frente de um carro, pessoas que passavam por lá disseram que ela estava enlouquecida, saiu pela rua gritando e antes mesmo que alguém pudesse evitar, ela já tinha sido pega por um carro que passava em alta velocidade pela avenida.
Luciano fica atônito:
- Mas... Não pode ser... Ela está grávida de sete meses e meio... meu filho... eu... Julia... meu...
O médico percebe a visível perda de razão de Luciano, e diz:
- Ela está muito mal, parece até que estava drogada, mas não posso afirmar... Parece que partiu a espinha, teve lesões cerebrais, houve perda de massa encefálica, não sabemos ainda se está com hemorragia interna, nesse momento ela está sendo operada, também não sabemos sobre o estado de seu filho... Encontramos o telefone de seu trabalho na bolsa dela e resolvemos chamá-lo.
Finalmente chega na porta da sala de operações, o médico diz:
- Bem, senhor, agora é só aguardar.
Ele sai e deixa Luciano ali, sentindo sua alma se esvaindo aos poucos, vendo a tênue linha da vida se partindo. Senta-se num sofá e aguarda.
Não demora muito e finalmente surge um outro médico, mais velho, com um ar mais austero:
- Você deve ser Luciano, não?
Ele dá um pulo do sofá:
- Sim, sou eu!
Sem entremeios ele dá a notícia:
- Seu filho faleceu, senhor.
Ele esbugalha os olhos e sente um aperto no coração, uma palpitação nunca antes experimentada surgiu em seu coração. Engole seco antes de perguntar:
- E Julia?
Enquanto anota alguma coisa numa prancheta que segura, o médico diz:
- Ela sobreviveu por um milagre, um acidente de uma gravidade dessas é raro a pessoa escapar, mas infelizmente ela ficará inválida para o resto da vida.
Luciano tem um ataque de nervos, ajoelha-se e chora aos pés do médico, que não esboça nenhuma reação emotiva.

¤

O que aconteceu depois estarreceu os familiares de Luciano, durante os anos que se seguiram, ele ficou feliz em assumir os deveres de cuidar de sua esposa, ela permanecia inerte, no berço que serviria para o bebê, seu corpo era encarquilhado, seus bracinhos eram duas varetinhas que se quebrariam a qualquer esforço, seu rosto, outrora cheio de vida, agora era deformado, perdera os dentes, não podia mais falar devido a complicações no cérebro, não tinha mais noção de nada, era como um objeto que jazia sobre aquele berço sujo. Os brinquedos do quarto que estavam empoeirados, muitos deles já velhos demais, se desfaziam ao tocar, as paredes pintadas de amarelo escondia as marcas de sujeira que pairavam no lugar, o abajur que projetava formas infantis tivera que ser apagado, Julia sentia medo de ver aquelas imagens projetadas na parede e no teto de noite, e se debatia como uma histérica.

Luciano largou seu emprego, tinha que se dedicar tempo integral para aquela pessoa que estava em sua casa, aquele hóspede especial precisava de toda sua atenção.

¤

Certo dia, o ex-companheiro de trabalho liga para ele tentando convencê-lo a voltar ao emprego:
- Alô! Luciano!
Foi lacônico:
- Alô!
- Oi! Aqui é o Paulinho. Cara, você não imagina a falta que faz no escritório, o chefe me pediu prá te ligar e te convencer a voltar a trabalhar.
Luciano, com a mais pura languidez, apenas diz:
- Não posso. Tenho que cuidar de meu filho!

¤

FIM

Dimitri Kozma

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