6 de maio de 2008

UM FILHO PERFEITO - Conto de Dimitri Kozma

O sonho de Luciano sempre foi ter um filho, um primogênito, alguém que continuasse sua existência, casara-se cedo, tinha vinte anos, sua esposa, Julia, tinha pouco menos, moça delicada, não gostava muito de falar, aquietava-se constantemente. Luciano, por outro lado, era falante, gostava se conversar, tinha uma extensa relação de amigos e conhecidos, falava de sua vida com todos, e se relacionava bem com qualquer estranho.

Um dia, depois de sair do trabalho, Luciano passa numa loja no Shopping Center próximo a sua casa, escolhe um brinco de ouro, cravejado com uma pedrinha de diamante, não era rico, mas gostava de presentear sua amada esposa. Paga em três vezes o bem recém adquirido e ruma para a casa, um sobrado simples, porém arrumadinho num bairro de periferia.

- Ju! Querida! – Grita Luciano, abrindo o portão e rumando em direção a sala.

A esposa estava passando roupa no quintal e não pode ouvir o marido chegar, ouvia um velho rádio de pilha no último volume, tocava um novo sucesso do grupo “Bundinha Marota”, um desses conjuntos que se formam de um dia para a noite. Julia dançava enquanto passava uma velha calça jeans puída.

- Ju! Você está em casa? – Luciano brada, entrando na sala e invadindo a cozinha, que estava impecavelmente arrumada, cheirando a desinfetante e o chão refletia sua imagem.
Julia ouve seu marido chegando, e grita:
- Aqui no fundo, Luciano!

Mais que depressa, Luciano corre até os fundos da casa, dando um longo abraço em Julia, beijando-a apaixonadamente ao som de “Bundinha Marota”, depois de alguns segundos, Luciano fala:
- Olha o que eu trouxe prá você, Ju! – Diz enquanto mostra a pequena caixinha embrulhada num colorido papel de presente. Julia pega euforicamente e exclama:
- Oh! Amor! Você sempre me dando presentes, fico até sem graça.
Enquanto Julia abre o pacotinho, Luciano diz:
- Esqueceu que dia é hoje, dona Julia? Hoje faz dois anos que estamos juntos. Dois anos! – Exclama, alegremente. Julia para por um instante de desembrulhar o presente e olha para Luciano.
- Dois anos? Hoje? Amor... Eu esqueci, você acredita? Eu esqueci!
- Não se preocupa, Julia, isso é normal, sei como anda sua cabeça, sei como é importante prá gente...
Antes que Luciano termine, Julia diz:
- ... Ter um filho, né? Eu sei, Luciano, prá nossa felicidade ser completa, só falta ter-mos um filho, mas...
Nesse instante, antes mesmo de abrir o presente, lágrimas começam a brotar do rosto de Julia, Luciano percebe que não fora feliz em seu comentário, e tenta remediar:
- Ju! Calma, querida! Eu sei que a gente está tentando, sei que não é culpa de ninguém... Olha prá mim, gatinha...
Ela permanece com os olhos voltados ao chão, Luciano delicadamente coloca o dedo indicador sob seu queixo e força seu olhar em direção a ele, continua:
- Ju! A gente vai conseguir, tá entendendo? A gente vai conseguir ter esse filho, e vai ser a criança mais linda da face da Terra, viu?
Enxugando as lágrimas que teimam em rolar, Julia diz:
- Eu sei como esse filho é importante prá você, amor...
Luciano interrompe:
- Prá mim só, não, Ju! Esse filho é importante prá nós dois, não é?
- Sim... claro! Prá nós dois. – desvia o olhar novamente para o chão.
- Agora, Ju, abre seu presente, abre. Tenho certeza de que vai gostar.
Ela volta novamente sua atenção a caixinha semi aberta, e termina de rasgar o papel, abre e se surpreende, não é nada muito sofisticado, mas é delicado o suficiente para fazê-la abrir um sorriso e dizer:
- Amor! É lindo! Adorei!
Pula nos braços de Luciano, agarrando-o pelo pescoço e dando um forte abraço. Ali permanecem, por um tempo, ao som de mais um sucesso popular tocando no rádio da lavanderia.

¤

Um mês depois, estava Luciano em seu trabalho, um escritório de contabilidade, analisando alguns documentos, quando o telefone toca:

- Medeiros e associados bom dia! – diz formalmente Luciano.
- Alô! Querido! Sou eu!
- Ju! Oi amor!
- Você está muito ocupado?
- Não, só estou conferindo uns documentos, nada muito importante... Porque?
- Amor... Acabo de voltar do médico... Acho que estou grávida!
Luciano emudece por alguns segundos e então solta um grito eufórico, seu colega de trabalho, Paulinho, dá um pulo de susto na cadeira ao lado. Uma repentina alegria invade o âmago de Luciano que diz:
- Gravida! Grávida! Finalmente!
O resto do dia, Luciano não pode se concentrar no trabalho, saiu mais cedo e rumou para casa. Lá chegando, já vai logo abraçando a esposa gestante:
- Querida! Eu sabia! Sabia que esse dia não iria demorar! Sabia!
As lágrimas rolam de alegria do rosto transfigurado, ele soluça como uma criança, transbordando de tanta felicidade: “Esse é o dia mais feliz de minha vida. Você me fez o homem mais feliz do mundo!” – Grita sem limites, e ainda diz, com uma euforia quase que doentia:
- Quer saber do mais? Vamos já montando o quarto do meu filho, ele vai ser a criança mais mimada da face da Terra! Vou sair agora mesmo e comprar alguns brinquedos, vou mandar o marceneiro vir amanhã mesmo prá ir montando o quartinho dele, a gente pode usar aquele quarto ao lado do nosso, aquele que está a escrivaninha, sabe? Acho que seria o melhor, vou mandar pintar as paredes e...
Julia interrompe, com um sorriso no rosto, diz:
- Luciano, você não acha que está sendo um pouquinho apressado? Afinal, estou grávida de um mês e meio, ainda nem sabemos se é menino ou menina.
Para e reflete:
- Tem razão, Ju! Então vou pintar o quarto de amarelo, aí não tem problema, né?
Julia solta um lindo sorriso e abraça Luciano, dando-lhe um beijo.

¤

Certo dia, dois meses depois, Julia atende a uma ligação do médico, o doutor Carvalho, um velho conhecido do pai de Julia, e que estava assistindo a gestante em todo seu período pré-natal. Doutor Carvalho já tinha anos de experiência, sabia tudo de partos, tinha colocado no mundo mais de duas mil crianças. Era um velho simpático, cabelos brancos, uma grande barriga e uma conversa simples e divertida, mas neste dia, ele fala friamente:

- Julia?
Ela responde efusivamente, alegre:
- Doutor Carvalho? Oi! Tudo bem? Como vai?
O velho médico diz:
- Bem. Julia, seu marido está aí? Preciso falar com ele.
- Está sim, espera um instante... – Coloca a mão no bocal do fone e chama Luciano, que está fazendo a barba preparando-se para ir trabalhar: “Luciano, é o doutor Carvalho, ele quer falar com você.”
- Comigo? – para de fazer a barba, enxuga a espuma numa toalha de rosto e vai atender ao telefone – “Doutor Carvalho? Que prazer! Como vai o senhor?”
Carvalho responde com uma certa tensão:
- Eu vou bem. Luciano, acabei de receber o resultado dos exames que pedi para Julia fazer...
Luciano começa a ficar apreensivo:
- Ótimo, e então, vai ser menino ou menina?
- Luciano, acho que temos um probleminha... Você poderia vir até aqui hoje?
Ele arregala os olhos e diz:
- Probleminha? Como assim doutor? Não me deixe nessa apreensão!
Carvalho começa a dizer:
- É muito sério, Luciano...
Julia não pode escutar o que o doutor Carvalho falava, apenas pode ver o rosto de Luciano se transformando, tornando-se pesado, grave. Ele não disse ao menos adeus ao doutor, vociferou alguma coisa e bateu o telefone. Depois de desligar, Luciano fica por alguns segundos olhando a parede vazia, como se o mundo despencasse em suas costas. Julia olha para ele e diz:
- Amor... O que aconteceu? Me diga, o que aconteceu? Fala!
Ele não respondia, apenas fitava a parede, olhava a porta, que dava para ver o quarto ao lado, com as paredes pintadas de amarelo, um abajur colorido iluminando a penumbra, projetando na parede figuras infantis. Divagava. Julia então chacoalha o corpo de Luciano, gritando:
- Fala! Fala! Luciano! Fala o que aconteceu! – Ela já parecia transtornada, já parecia antever alguma coisa.
Luciano vira-se para ela, com o olhar meio vago, engasgando entre as palavras, diz:
- A criança...
Julia olha fixamente para ele, esperando a conclusão da frase, mas a conclusão não vem, Luciano começa a chorar copiosamente. Julia abraça-o, ele coloca as mãos na face, esfregando veementemente o rosto semi-barbado.
Julia, apesar da apreensão, da tensão, não consegue falar nada, espera que Luciano pare um pouco de chorar. Ele tenta enxugar as lágrimas, que ainda escorrem involuntariamente, acalma-se um pouco e diz:
- A criança... vai nascer deformada...
Julia toma a notícia como um choque, ficou sem reação por alguns segundos e em seguida cai no chão, desfalecida. Luciano a coloca na cama e liga novamente para o doutor. Ele receita um calmante e muito descanso para ambos.

¤

No dia seguinte, mesmo dopado com meia dúzia de calmantes, Luciano deixa em casa Julia, mergulhada num sono profundo diante da quantidade de medicamentos que tomou e foi procurar o doutor Carvalho, que contou detalhes sobre o fato:

- Bem, o caso é mais sério do que eu supunha. A criança vai nascer com paralisia cerebral, provavelmente não sobreviverá ao parto, mas se sobreviver, terá uma vida vegetativa para sempre.
Luciano ainda tenta encontrar solução:
- Mas doutor, não tem uma maneira de resolver-mos esse problema? Nada?
- Infelizmente não, se vocês optarem por ter essa criança, terão que carregar este fardo para o resto da vida.
- Optar por ter? Como assim?
- A lei é bem clara, se vocês resolverem tirar essa criança, é perfeitamente legal, não existiria empecilho algum, vocês teriam livre arbítrio para escolher.
Luciano foi enfático e responde sem titubear:
- Já está decidido, doutor! Meu sonho sempre foi ter um filho e agora que isso está perto de acontecer, não vou jamais abandonar esse sonho. Nós vamos ter essa criança!
E quando saía do consultório do doutor carvalho, já na porta, Luciano fez uma recomendação:
- Doutor, queria lhe pedir um favor...
- Pode dizer.
Vira-se e quase sussurra no ouvido do velho médico:
- Eu queria que não dissesse nada dessa história de aborto para Julia... O senhor entende, não é, doutor?
O doutor ergue a voz e diz em tom revoltado:
- Mas isso é um absurdo, Luciano! Sua mulher também tem o direito de decidir sobre o futuro dessa criança!
- Eu sei, eu sei, mas deixe que eu falo com ela, ta´? Deixa comigo que eu explico tudo. Só me promete isso, doutor.
O médico, olhando para o relógio, viu que a hora do almoço já se aproximava, para encurtar conversa, concordou com Luciano:
- Tá certo! Tá certo!

¤

Os dias passam, e nenhum dos dois tocou no assunto com o outro, finalmente, num dia, enquanto tomavam café da manhã na mesinha da cozinha, Julia, enquanto comia uma torrada com manteiga, pergunta:

- Luciano, nosso filho... – pausa, pensa um pouco e toma coragem: - O que o doutor disse? Como ele vai ser?
Luciano, que não estava se sentindo bem, tinha palpitações, falta de ar, tomava um café preto amargo, finalmente relata:
- Julia, o doutor disse que a criança tem paralisia cerebral. Se sobreviver ao parto vai ficar como um vegetal para o resto da vida.
Ela para de comer e seus olhos ficam marejados:
- Mas, não podemos tirar? Nós poderíamos tentar de novo, poderíamos ter um filho perfeito...
Luciano interrompe:
- Hei! Hei! Esqueceu que isso é ilegal no nosso país? E além do mais, essa criança que você carrega é meu filho também, não é?
Ela fecha os olhos e esfrega a testa:
- É! Mas eu pensei... Se a gente fosse numa clínica clandestina...
Ele interrompe:
- Nem pense numa coisa dessas! Escuta, Julia, é um pouco de mim o que está dentro de você, ele vai nos dar muita alegria, vamos amá-lo, mesmo com todos esses problemas, ele é nosso filhinho.
As lágrimas brotam sem limites dos olhos de Julia. Ela não consegue mais falar, apenas chora.

(... continua - não perca o final da história!)

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