Estou aqui, dependurado no parapeito desta janela, olhando a vida se esvair aos poucos pelo suor de meus poros. Os fogos de artifício já estão anunciando o novo ano que vem chegando, mas para mim nada é feliz, próspero ou o que for. Para mim este é o início de mais um ano da mais doída solidão, solidão esta que eu mesmo semeei.
O televisor ligado iluminando a sala vazia é o único ruído de vozes que eu consigo ouvir. As ruas parecem desertas, todos estão em suas casas, comemorando a virada de ano com seus parentes e eu aqui, prestes a me desprender desta vida que não leva a nada. Não estou vendo mais nenhuma esperança, nada. Apenas um caminho cada vez mais estreito em minha frente. Foi doído este último ano que passou. Imaginava que as coisas poderiam ter mudado... Mas não mudaram nada.
Continuo sem esperança de uma vida melhor, de um futuro um pouco mais promissor. Foram anos sem ao menos ter uma pessoa com quem conversar, uma pessoa com quem possa trocar confidências. Meus cabelos estão alvoroçados pelo vento, as luzes lá embaixo parecem formiguinhas, uma colônia inteira de formiguinhas... Ah! Insetos sociais, diferentes de mim. Eu vivo aqui nesta minha inexpugnável fortaleza, com meus discos e meus livros. Com minha televisão, a única companheira, que conversa comigo todas as noites quando chego em casa... O telefone toca apenas quando algum cobrador quer me pressionar.
Aquela firma que eu havia herdado de meu pai... Parece que faz tanto tempo... O velho morreu sem saber ao menos o porque. Fiquei feliz com sua morte. Antes ele me considerava um moleque. Irresponsável demais para ter um cargo administrativo naquela sua firma. Mas herdei tudo, velho! Tudo! Mas nada me satisfazia... Precisava de algo mais. Precisava de uma pessoa com quem pudesse conversar. Uma mulher bonita, vistosa... Uma mulher que fosse alvo de olhares de todos aqueles malditos acionistas. Queria impressioná-los, mostrar que eu era um “bom vivant”.
Foi aí que conheci Luciana... Aqueles olhos verdes mexiam com minha libido... Aquele corpo escultural, parecia com a Vênus de Botticelli... Linda! Uma dama maravilhosa. Capaz de despertar a paixão do mais insensível dos homens. Mas comigo não funcionou... Eu a queria apenas como acompanhante. A queria como um adorno, um animalzinho de estimação.
Luciana! Eu te prometi tanto! Te daria o céu e a terra se você apenas cumprisse seu mísero papel de esposa fiel... Mas você cumpriu? Me responda, Luciana! Você cumpriu seu simples papel de esposa? Não! Teve que dormir com cada um dos malditos acionistas! Cada um provou o gosto de seus lábios carnudos e amargos. Cada um deles! Depois disso... Eu era motivo de chacotas... Cada um que esbarrava em mim, ria com um olhar de escárnio. Você me fez ser o motivo de gozação de todos aqueles funcionários! Todos! Apenas eu não sabia daquilo... Nem suspeitava! Foi quando recebi uma carta anônima... Engraçado como as pessoas fazem tudo para verem os outros infelizes, não? Aquela carta me revelou toda a sua sordidez...
Eu não tocava em seu corpo! Nunca a toquei! Você sabe que eu não suportaria... Você sabe que a minha solidão sempre foi um fator importante em minha vida... Mas respeitou isso? Não! Você teve que dar o rabo para todos os malditos acionistas da maldita firma que herdei! Para todos! Quando eu te mandei embora, você ainda queria uma indenização! Você é muito safada, Luciana! Muito safada! Uma indenização? Você merecia a morte! Não sei aonde estava com a cabeça quando a deixei sair sem ao menos te bater! Você merecia isso, Luciana! Merecia!
Todos zombavam de mim, por isso eu comecei a beber como um louco... Era uma garrava de scotch por dia, no mínimo. Entrava naquela maldita firma e só saía depois que tivesse acabado com uma garrafa inteira! Já havia até acostumado... Nem bêbado mais eu ficava... Claro que não demorou muito para eu perder a firma. Claro! As dívidas estavam se tornando insuportáveis e eu não tive escolha... Não tive! Os malditos acionistas... Os mesmos que comeram Luciana... Ficaram com o que havia sobrado... Saí de lá com uma mão na frente outra atrás. Nada, apenas este apartamento que está caindo aos pedaços.
A televisão me alegra. Deixe-me ver o que está passando... Hum... Está passando um especial de ano novo. Cantores sertanejos estão fazendo uma oração. Que horas são? Deixe-me ver... Hum... Quase meia noite... Mais um ano de absoluta solidão vai terminar... Mas eu não vou deixar que outro ano assim comece. Não vou deixar.
Antes que o ano termine, eu irei voar por esta janela, um voo que vai me libertar das amarras invisíveis que me prendem nesta vida.
Me lembro quando ainda era um moleque. Uma infância rica, cheia de mimos de toda a família. Desde aquele dia em que minha mãe foi embora com aquele homem... Meu pai nunca mais foi o mesmo. Minha mãe... Não me lembro muito bem de seu rosto... Apenas posso sentir seu perfume doce invadindo minhas narinas. Até hoje tenho a nítida impressão de que ela vai voltar um dia. Tenho a sensação exata de que aquela porta vai se abrir e eu vou poder abraçá-la como nunca havia feito.
Meu pai tinha ficado obcecado por vingança depois que ela foi embora... Mas nunca a encontrou. Eu deveria ter uns cinco ou seis anos. Me lembro quando ele levava aquelas meninas para casa. Eram pequenas... Uns treze anos ou menos... Ele as violentava na minha frente. Me fazia assistir a tudo aquilo. Eu não entendia nada, mas achava engraçado aquelas mulherzinhas gritando de dor naquela sala escura.
Enquanto socava violentamente o orgão para dentro delas, ele ainda gritava para mim: “Mulher tem que ser tratada assim! Olha bem, Zé Luis! Mulher tem que ser tratada no cacete!”, dizia enquanto puxava os cabelos daquelas meninas com força...
Claro que ninguém poderia te pegar, não é pai? Claro que o dinheiro sempre falou mais alto! Você calava as bocas dos pais das garotas com uma merreca de nada, um troco. Cresci neste ambiente escuro, sozinho. Passava dias sem ver o velho, que as vezes levava algumas dessas menininhas para a casa de praia... Só Deus sabe o que ele fazia com elas lá.
Bem... Sua morte foi bonita. Isso foi! Um enfarte! Foi quase teatral. Você se levantou e cambaleou, a melhor parte foi quando rolou escada abaixo. Magistral! Ninguém suspeitou de nada... Afinal... Você era meu papai! E vivia bêbado, né? Rolou tão bonito... Tudo ficou para mim! Tudo veio em minhas mãos... décadas de seu trabalho que eu consegui arruinar em cinco anos... Acontece... Paciência.
Mas isso não importa mais... O que importa é que estou prestes a me despedir deste mundo em grande estilo. Este será meu maior Reveillon. Desta vez eu finalmente irei passar por uma experiência nova. O mundo me espera. O mundo finalmente vai sentir minha falta depois que eu saltar deste prédio.
Já estou imaginando... Amanhã, nos grandes jornais, primeiro de janeiro: “Empresário arruinado se joga do prédio”, vai ser a glória! Minha foto na primeira página, esborrachado no asfalto. Minha nossa! Como eu não pensei nisso antes! Vai ser lindíssimo!
O efeito das drogas que ingeri já estão fazendo efeito... Me sinto tonto... Meu corpo parece que balança neste parapeito rachado pelo tempo... Estou perdendo os sentidos... Não sei mais quanto tempo vou suportar essa dor me devorando a alma. As cicatrizes nunca desaparecerão, nunca!
Os fogos estão se intensificando. Acho que a hora é essa, o ano velho está ficando para trás e eu vou com ele. Eu irei junto com o ano velho! No ano novo, o mundo poderá respirar mais aliviado. Não estarei mais aqui. Não estarei mais aqui.
Meus braços não seguram mais no beiral, estou livre, solto. Os fogos de artifício não param e eu sinto uma vontade enorme de voar. O vento parece assobiar como se me chamasse. Minhas pernas bambeiam e eu finalmente me desprendo da janela. O céu está iluminado com as partículas incandescentes e eu finalmente estou voando. Estou livre.
¤
FIM
O televisor ligado iluminando a sala vazia é o único ruído de vozes que eu consigo ouvir. As ruas parecem desertas, todos estão em suas casas, comemorando a virada de ano com seus parentes e eu aqui, prestes a me desprender desta vida que não leva a nada. Não estou vendo mais nenhuma esperança, nada. Apenas um caminho cada vez mais estreito em minha frente. Foi doído este último ano que passou. Imaginava que as coisas poderiam ter mudado... Mas não mudaram nada.
Continuo sem esperança de uma vida melhor, de um futuro um pouco mais promissor. Foram anos sem ao menos ter uma pessoa com quem conversar, uma pessoa com quem possa trocar confidências. Meus cabelos estão alvoroçados pelo vento, as luzes lá embaixo parecem formiguinhas, uma colônia inteira de formiguinhas... Ah! Insetos sociais, diferentes de mim. Eu vivo aqui nesta minha inexpugnável fortaleza, com meus discos e meus livros. Com minha televisão, a única companheira, que conversa comigo todas as noites quando chego em casa... O telefone toca apenas quando algum cobrador quer me pressionar.
Aquela firma que eu havia herdado de meu pai... Parece que faz tanto tempo... O velho morreu sem saber ao menos o porque. Fiquei feliz com sua morte. Antes ele me considerava um moleque. Irresponsável demais para ter um cargo administrativo naquela sua firma. Mas herdei tudo, velho! Tudo! Mas nada me satisfazia... Precisava de algo mais. Precisava de uma pessoa com quem pudesse conversar. Uma mulher bonita, vistosa... Uma mulher que fosse alvo de olhares de todos aqueles malditos acionistas. Queria impressioná-los, mostrar que eu era um “bom vivant”.
Foi aí que conheci Luciana... Aqueles olhos verdes mexiam com minha libido... Aquele corpo escultural, parecia com a Vênus de Botticelli... Linda! Uma dama maravilhosa. Capaz de despertar a paixão do mais insensível dos homens. Mas comigo não funcionou... Eu a queria apenas como acompanhante. A queria como um adorno, um animalzinho de estimação.
Luciana! Eu te prometi tanto! Te daria o céu e a terra se você apenas cumprisse seu mísero papel de esposa fiel... Mas você cumpriu? Me responda, Luciana! Você cumpriu seu simples papel de esposa? Não! Teve que dormir com cada um dos malditos acionistas! Cada um provou o gosto de seus lábios carnudos e amargos. Cada um deles! Depois disso... Eu era motivo de chacotas... Cada um que esbarrava em mim, ria com um olhar de escárnio. Você me fez ser o motivo de gozação de todos aqueles funcionários! Todos! Apenas eu não sabia daquilo... Nem suspeitava! Foi quando recebi uma carta anônima... Engraçado como as pessoas fazem tudo para verem os outros infelizes, não? Aquela carta me revelou toda a sua sordidez...
Eu não tocava em seu corpo! Nunca a toquei! Você sabe que eu não suportaria... Você sabe que a minha solidão sempre foi um fator importante em minha vida... Mas respeitou isso? Não! Você teve que dar o rabo para todos os malditos acionistas da maldita firma que herdei! Para todos! Quando eu te mandei embora, você ainda queria uma indenização! Você é muito safada, Luciana! Muito safada! Uma indenização? Você merecia a morte! Não sei aonde estava com a cabeça quando a deixei sair sem ao menos te bater! Você merecia isso, Luciana! Merecia!
Todos zombavam de mim, por isso eu comecei a beber como um louco... Era uma garrava de scotch por dia, no mínimo. Entrava naquela maldita firma e só saía depois que tivesse acabado com uma garrafa inteira! Já havia até acostumado... Nem bêbado mais eu ficava... Claro que não demorou muito para eu perder a firma. Claro! As dívidas estavam se tornando insuportáveis e eu não tive escolha... Não tive! Os malditos acionistas... Os mesmos que comeram Luciana... Ficaram com o que havia sobrado... Saí de lá com uma mão na frente outra atrás. Nada, apenas este apartamento que está caindo aos pedaços.
A televisão me alegra. Deixe-me ver o que está passando... Hum... Está passando um especial de ano novo. Cantores sertanejos estão fazendo uma oração. Que horas são? Deixe-me ver... Hum... Quase meia noite... Mais um ano de absoluta solidão vai terminar... Mas eu não vou deixar que outro ano assim comece. Não vou deixar.
Antes que o ano termine, eu irei voar por esta janela, um voo que vai me libertar das amarras invisíveis que me prendem nesta vida.
Me lembro quando ainda era um moleque. Uma infância rica, cheia de mimos de toda a família. Desde aquele dia em que minha mãe foi embora com aquele homem... Meu pai nunca mais foi o mesmo. Minha mãe... Não me lembro muito bem de seu rosto... Apenas posso sentir seu perfume doce invadindo minhas narinas. Até hoje tenho a nítida impressão de que ela vai voltar um dia. Tenho a sensação exata de que aquela porta vai se abrir e eu vou poder abraçá-la como nunca havia feito.
Meu pai tinha ficado obcecado por vingança depois que ela foi embora... Mas nunca a encontrou. Eu deveria ter uns cinco ou seis anos. Me lembro quando ele levava aquelas meninas para casa. Eram pequenas... Uns treze anos ou menos... Ele as violentava na minha frente. Me fazia assistir a tudo aquilo. Eu não entendia nada, mas achava engraçado aquelas mulherzinhas gritando de dor naquela sala escura.
Enquanto socava violentamente o orgão para dentro delas, ele ainda gritava para mim: “Mulher tem que ser tratada assim! Olha bem, Zé Luis! Mulher tem que ser tratada no cacete!”, dizia enquanto puxava os cabelos daquelas meninas com força...
Claro que ninguém poderia te pegar, não é pai? Claro que o dinheiro sempre falou mais alto! Você calava as bocas dos pais das garotas com uma merreca de nada, um troco. Cresci neste ambiente escuro, sozinho. Passava dias sem ver o velho, que as vezes levava algumas dessas menininhas para a casa de praia... Só Deus sabe o que ele fazia com elas lá.
Bem... Sua morte foi bonita. Isso foi! Um enfarte! Foi quase teatral. Você se levantou e cambaleou, a melhor parte foi quando rolou escada abaixo. Magistral! Ninguém suspeitou de nada... Afinal... Você era meu papai! E vivia bêbado, né? Rolou tão bonito... Tudo ficou para mim! Tudo veio em minhas mãos... décadas de seu trabalho que eu consegui arruinar em cinco anos... Acontece... Paciência.
Mas isso não importa mais... O que importa é que estou prestes a me despedir deste mundo em grande estilo. Este será meu maior Reveillon. Desta vez eu finalmente irei passar por uma experiência nova. O mundo me espera. O mundo finalmente vai sentir minha falta depois que eu saltar deste prédio.
Já estou imaginando... Amanhã, nos grandes jornais, primeiro de janeiro: “Empresário arruinado se joga do prédio”, vai ser a glória! Minha foto na primeira página, esborrachado no asfalto. Minha nossa! Como eu não pensei nisso antes! Vai ser lindíssimo!
O efeito das drogas que ingeri já estão fazendo efeito... Me sinto tonto... Meu corpo parece que balança neste parapeito rachado pelo tempo... Estou perdendo os sentidos... Não sei mais quanto tempo vou suportar essa dor me devorando a alma. As cicatrizes nunca desaparecerão, nunca!
Os fogos estão se intensificando. Acho que a hora é essa, o ano velho está ficando para trás e eu vou com ele. Eu irei junto com o ano velho! No ano novo, o mundo poderá respirar mais aliviado. Não estarei mais aqui. Não estarei mais aqui.
Meus braços não seguram mais no beiral, estou livre, solto. Os fogos de artifício não param e eu sinto uma vontade enorme de voar. O vento parece assobiar como se me chamasse. Minhas pernas bambeiam e eu finalmente me desprendo da janela. O céu está iluminado com as partículas incandescentes e eu finalmente estou voando. Estou livre.
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FIM
Dimitri Kozma
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