14 de março de 2008

NOITE MALDITA - Parte 2 - Conto - Dimitri Kozma

(continuação da história postada em 13/03)


O carro dá a volta e eles podem ver um movimento meio estranho na rua, chegam novamente a ladeira que haviam subido, uma aglomeração se forma onde anteriormente estava o motoqueiro com quem Mauro conversou, chegando finalmente ao auge da ladeira, eles vêem um corpo estendido do chão, uma poça de sangue escorria, Mauro diz:
- Parece que mataram uma pessoa...
O carro se aproxima mais um pouco e Edu constata assombrado:
- É o motoqueiro! Mataram o motoqueiro!
Júlio choraminga:
- Meu Deus!
Um frio na espinha congela a alma dos três, o carro não pode mais voltar, terão que passar no meio da aglomeração. Haviam vários moradores ali na rua, muitos deles de pijamas e chinelos, todos se surpreenderam com aquele barulho e saíram para averiguar, foi quando viram o cadáver recém baleado ali jogado ao meio-fio.
Mauro tenta manter a calma e diz aos dois, calmamente e olhando para frente:
- Seguinte... Não podemos voltar, senão eles vão desconfiar, vamos ter que passar lá pelo meio... vocês dois, mantenham a calma, certo? Tentem agir naturalmente...
Os dois concordam apenas com um murmúrio.
O carro passa lentamente, os três olham para frente, congelados de pavor, não podem ver ao certo quantas pessoas estavam ali, mas eram mais de vinte, Mauro diminui mais a velocidade porque a rua está apinhada de gente, antes mesmo que o carro consiga passar pela multidão, um velho careca com um cachecol enrolado no pescoço observa os três, vira-se para os outros e grita:
- Hei! O que esses garotos estão fazendo aqui de carro numa hora dessas?
O suor começa a escorrer pelo rosto de Mauro, sempre quando ficava nervoso começava a suar como um condenado. Outro morador faz sinal para o carro parar, Edu diz, com os olhos arregalados e branco de pavor, sem mexer muito os lábios:
- Meu Deus! Querem que a gente pare, e agora? Já pensou se descobrem que a gente estava usando drogas, já pensou o que o meu pai ia fazer? É melhor... É melhor a gente fugir...
Com o suor jorrando de seus poros, Mauro, enquanto aperta o volante firmemente com as duas mãos, tenta ser otimista:
- Fugir não! Vamos... Vamos parar! Afinal não fizemos nada, não é? E vocês dois mantenham a calma, não devemos nada... Não temos nada a ver com a morte desse cara...
- Eu falei prá gente ir embora, não falei, Mauro? – Diz Júlio, apavorado diante da situação.
Mauro finaliza a conversa:
- Cala a boca! Vai dar tudo certo.
O carro estaciona do lado oposto ao do cadáver estirado no chão, imediatamente um dos moradores, um homem de meia idade com óculos espessos e barba por fazer, abre furiosamente a porta do lado de Mauro, que estava destrancada e já vai inquirindo:
- O que vocês fazem aqui uma horas dessas?
Júlio começa a tremer como vara verde, não consegue se conter diante de uma pressão tão intensa, mas esconde o rosto atrás do banco da frente, tentando disfarçar a neurose. Edu não consegue esboçar nenhuma reação, apenas olha para frente, com o pescoço duro de tensão, as mãos apoiadas nas coxas, apertando firmemente.
Mauro, ainda apertando o volante, olha o rosto furioso do homem e vê que não tem outra opção a não ser sair do carro, meio nervosamente ele se levanta, lentamente, a transpiração não cessa, a camisa está encharcada, passa a mão na testa tentando limpar o líquido que vertia de seus poros e responde relutante:
- A gente... A gente se perdeu... V-viemos visitar um amigo e nos perdemos...
Outro velho morador que ouvia tudo um pouco afastado se aproxima:
- Visitar amigo, heim? Não tá meio estranha essa história não?
Mauro responde enquanto esfrega as costas da mão na testa:
- É sério! Amigo de infância... Ele se mudou faz... um tempo...
- E qual é o nome dele? – Pergunta o velho, cada vez mais ressabiado.
- O nome dele? O nome dele é... é... M-Mauro... – Mente descaradamente, não imaginava outra solução, não podia falar a verdade, não poderia dizer que estavam perambulando por ali em busca de drogas. Seria quase que confessar um crime. Mas é relutante e deixa transparecer no seu semblante que estava mentindo, Mauro nunca foi um bom mentiroso, desde os tempos de criança sempre foi pego quando não dizia a verdade.
O velho barrigudo, trajando um pijama amarelo ovo com manchas de gordura, chinelos rasgados, cabelos despenteados alvoroçados ao vento e exalando um forte cheio de pomada olha lentamente Mauro de cima a baixo e pergunta:
- Mas onde ele mora? Qual rua?
Mauro se apavora:
- Rua? Não sei... – Abaixa os olhos por alguns segundos e então enfia a cabeça para dentro do carro e pergunta: “Edu, qual é a rua que nosso amigo Mauro mora? Você lembra?”. Olha-o por alguns segundos enquanto lança um olhar cúmplice para o amigo.
- Eu... perdi o endereço... – Responde Edu, apavorado segurando as lágrimas. Júlio apenas olha, a respiração não passa livremente por sua traquéia, que está fechada de nervoso.
Com um olhar de dúvida, o velho ainda pensa por alguns segundos e diz:
- Muito estranho isso, né? Os dois, saiam do carro também... Rápido! – Aumenta a entonação a medida que fala.
Prontamente atendido, os dois irmãos sentem um frio no estômago. Quando Júlio sai, constata-se se suas calças estão todas urinadas, um forte cheio invade o olfato de todos. Suas pernas tremem involuntariamente. Coloca as mãos na frente, tentando disfarçar, mas com este ato apenas consegue chamar mais atenção.
O velho diz:
- Sabe... acabaram de matar o filho de nosso amigo Teotônio, Ele estava arrumando a moto para trabalhar amanhã e mataram ele... Covardemente... Mataram a troco de nada, nem roubado foi... Apenas por diversão... Mataram por diversão...
Os garotos apenas escutavam calados, olhando para o infinito, não conseguindo focar a atenção em nada, o velho continuava:
- É curioso isso, né? Matar por diversão... Tem gente que se diverte com cada coisa... Será que... – Olha cada um dos garotos nos olhos e diz: “Será que... Vocês não estão escondendo alguma coisa?”
Mauro toma a palavra e diz afobado:
- Eu juro, senhor, não estamos escondendo nada, estamos perdidos, só isso...
- Vamos ver isso... Hei, Carlos, dá uma revistada no carro desses moleques.
Eles estão virados em direção ao corpo, e não podem ver o carro sendo revistado atrás deles, Edu pensa desesperado: “Vão encontrar a maconha, estamos fudidos.” O velho continua olhando atentamente para o rosto dos três e continua a falar em um tom quase que de monólogo:
- Sabe... A gente mora num bairro meio afastado da cidade, nenhum prefeito se preocupa com a gente... temos uma certa dificuldade em conseguir policiais prá patrulharem nossas ruas... e a violência tá cada vez maior. Sabe o que fazemos?
Os garotos apenas olham, apavorados. Júlio não consegue mais se conter e começa a choramingar, seu nariz começa e escorrer e ele suga de volta o catarro que teima em sair. Edu e Mauro olham-se discretamente tentando estabelecer uma comunicação.
- Nós mesmos fazemos as leis por aqui. – Conclui o velho.
Essas palavras perfuram como facas as almas dos garotos. Os olhos vermelhos e assustados se arregalam e quase saltam de suas órbitas, uma gastura invade o estômago de Mauro, Edu sente uma corrente gelada percorrer sua espinha e as lágrimas escorrem livremente pelo rosto de Júlio.
Antes que alguém mais pudesse dizer alguma coisa, uma voz grave vem de dentro do carro:
- Olha só o que achei aqui...
Os garotos viram o olhar para trás e lá estava ele, segurando uma arma na mão, era ele: o negro cocho que haviam cruzado momentos antes de falarem com o motoqueiro.
- Olha só pessoal, estavam carregando essa arma, ainda está quente, é a arma do crime!
Ouve-se um uníssono alarido que vai se intensificando, Mauro não se contém e grita histérico:
- Mentira! Foi ele, foi ele que matou o motoqueiro! Foi ele!
Tenta avançar descontroladamente em direção ao homem, mas imediatamente dois fortes homens o seguram pelos braços, ele se debate, tentando se soltar, mas percebe que é em vão, jamais conseguiria, o cocho continua:
- Também achei isso! – Mostra um reluzente pacote de cocaína, todos se espantam.
Edu apenas fica ali, parado, sem nenhuma reação, Júlio se desmancha em lágrimas e agora não tenta mais esconder seu desespero latente. Mauro, ainda preso pelos braços, grita ferozmente:
- Por favor, nós não sabemos de quem é isso, não sabemos de quem é! Nós queríamos comprar pó, mas não achamos, por favor, isso é um engano! Ele tá querendo nos incriminar!
Ao mesmo tempo Júlio também grita, enquanto chora:
- Por favor, a gente não fez nada!
O velho de pijamas diz:
- E porque Carlos iria querer incriminar vocês, o que ele ganharia com isso? Ora! Já não dá mais prá mentir, falem a verdade, vai ser melhor prá vocês.
Tentando de todas as formas convencê-los de que aquilo tudo não passava de uma armação, Mauro ainda consegue dizer:
- Mas essa é a verdade...
Antes que ele possa continuar, um homem barbado, calçando botas pesadas de couro, desfere um forte chute em seu estômago, que o faz despencar no chão. Permanece ali, deitado, se contorcendo de dor. Edu abaixa-se para tentar acudi-lo, grita:
- Mauro! Mauro! Você tá...
Não conclui a frase quando é surpreendido por uma paulada na nuca, cai de cara no chão de terra, seu rosto fica em carne viva, ainda tenta se levantar, mas outra paulada o leva ao chão novamente.
Júlio grita até sua voz se esvair completamente, ajoelha-se perante o irmão desacordado e o abraça, as lágrimas parecem não ter fim, não diz nada, apenas grita, exaurindo-se em prantos.
Um chute nas costas o joga para alguns metros na frente, levanta-se e tenta correr, gritando desesperado, chamando a polícia, mas um dos moradores o segura pela camisa, ele não tem escolha e resolve se defender, mas agora já é tarde, cinco pessoas se aglomeram em torno dele e o jogam junto a Mauro e Edu, Mauro ainda se contorce de dor no estômago, mas tenta se levantar, em vão, desequilibra-se e cai encima de Edu, que permanece desacordado. Mais uma vez tenta se levantar, mas uma paulada no rosto frustra seus planos, o sangue escorre do nariz, misturando-se com o suor, que não cessa mais. Ainda grita:
- Não! Não fizemos nada! Não! Por favor!
Mas seus gritos são abafados pela multidão aos berros pedindo o linchamento dos rapazes. Júlio já não tem forças para reagir, seu corpo é surrado sem piedade. Uma velha, que assistia a tudo pela janela com um prazer indescritível, berra:
- Mata! Mata! Assassinos!
No momento seguinte, toda a multidão está pisoteando os três jovens, que estão sofrendo de fortes convulsões e dores terríveis, sem nenhuma chance de reação. Num ritual sádico e sem precedentes, aqueles garotos sofrem como cães. Mauro ainda se mantém acordado, preferindo que estivesse como seus amigos, que já não tinham consciência, ele sofre a tudo aquilo sentindo cada centímetro de dor em seu corpo, que a esta altura já era uma massa de sangue, seu rosto estava desfigurado e as forças para gritar já não existiam.
Uma visão hedionda, indescritível, a torrente humana extravasando seus sentimentos mais doentios naqueles jovens, alguns segundos depois, resolvem capotar o carro, cinco pessoas são suficientes. Enquanto isso, os jovens começam a levar pedradas que abrem feridas terríveis, uma delas atinge a cabeça de Edu, que se esmigalha, os pedaços de cérebro se esparramam pelo chão e seu corpo ainda se contorce. A esta altura, Mauro já não tem mais consciência, está desacordado, um dos moradores puxa seu maxilar com um pedaço de madeira, desprendendo-o da cabeça. Finalmente, após longos minutos de tortura escabrosa, o velho de pijamas ergue os braços e grita:
- Parem! Parem! agora é a vez do pai, o Teotônio!
Surge um opulento velho de barba vasta, corpo descomunal sem camisa, com uma larga bermuda rasgada e carregando um facão na mão, a atenção de todos vai para ele, o olham com dó, afinal acabara de perder o filho querido, um garoto exemplar.
Teotônio olha fixo para os garotos, seus olhos estão vidrados, não pisca, não esboça a menor reação, seu rosto é austero, tem uma aparência truculenta, doentia. O silêncio impera naquele lugar, nenhum dos presentes diz mais nenhuma palavra, não é necessário, o único barulho que se pode ouvir é o dos espasmos involuntários dos jovens estirados no chão. Dirige-se lentamente em direção aos garotos, todos já sabiam o que Teotônio iria fazer, aquilo iria compensar a perda do filho. Observa-os por mais alguns segundos e, um a um, vai desmembrando seus corpos. Com estocadas secas e precisas de um açougueiro, os pedaços são uniformes, aqueles nacos de carne esparramados pela rua causam um deleite coletivo. O sangue jorra como uma fonte e se mistura com a terra pisada.
Ao fundo Carlos, o negro cocho, apenas observa tudo, feliz, tira um pacotinho do bolso, coloca um pouco na palma da mão e discretamente aspira aquele pó branco.

¤

FIM

Dimitri Kozma

2 comentários:

  1. Não sei nem o que diser, li tudo. Não acreditando no destino dos garotos. Isso pode mesmo chegar a contecer, pessoas fazer justiça com suas proprias mãos dessa maneira. O.o

    Você escreve muito bem, ja escreveu um livro?

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  2. Obrigado!
    Tenho um livro de contos que pretendo publicar em breve.
    No momento estou a procura de uma editora.
    abraços!

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